Dando prosseguimento a série de artigos sobre as lutas pela Independência da Bahia do jugo português, em 1823, onde ocorreu uma guerra de cerco às forças lusitanas comandadas pelo brigadeiro Ignácio Madeira de Melo estacionadas em Salvador e se deram pequenissimas batalhas, até hoje sem os historiadores da época apontarem a quantidade de mortos, se 400/500/800 combatentes ao longo de toda a refrega que durou 1 ano, desta feita vamos comentar sobre a participação da heroina Maria Quitéria de Jesus, integrante de forças do Exército Pacificador na unidade do Batalhão dos Periquitos.
Já comentamos aqui que outra heroina, a freira Joana Angélica morreu por defender a porta da clausura do Convento da Lapa, num fato lamentável porém casual, ela que não era revolucionária nem nunca escreveu sequer um panfleto sobre o desejo de independência de Portugal, a qual foi relacionada pelos historiadores como heroinha das tais lutas.
O caso de Maria Quitéria de Jesus é parecido.
Nascida em São José das Itapororocas, na época (1792) povoado da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, Maria Quitéria levava vida de roceira, ela que fora filha do primeiro casamento do fazendeiro escravista Gonçalo de Jesus e tinha uma vida espartana aos olhos do velho Gonçalo, o qual (viúvo) se casara mais duas vezes e ampliara a familia mudando-se para propriedade na Serra da Agulha, distante 9 km de Tanquinho.
Maria Quitéria era uma filha de roceiro/fazendeiro como a maioria das demais da região vivendo uma vida dura, bastante limitada em amores e sob o controle e olhar permanente do patriarca, homem autoritário, próprio de sua época.
Quando estouraram os movimentos pela libertação da Bahia, Maria Quitéria foi tocada pelo desejo de liberdade, durante a visita de um representante dos “revolucionários” de Cachoeira a fazenda do seu pai, o qual percorreu as propriedades da região em busca de ajuda financeira e de infra-logística. O velho Gonçalo Alves de Almeida não abriu a chave do seu cofre e disse que, para ele, tanto fazia Brasil como Portugal, quem governasse continuaria tocando seu negócios com escravos, a criação do gado e o cultivo de produtos agrícolas que eram vendidos em Cachoeira.
Quitéria, filha do primeiro casamento de Gonçalo com Quitéria Maria de Jesus (falecida jovem), no entanto, viu nessa visita a oportunidade de se integrar nas forças revolucionários, mas não tinha a menor idéia do que isso representava, até porque seus conhecimentos de história eram rudimentares. Provavelmente alistou-se mais como um ato de libertação do jugo do pai do que de qualquer outra coisa. Daí que fugiu para Cachoeira com o apoio da irmã Tereza, filha de Gonçalo em seu terceiro casamento com Maria Rosa de Brito, casada com José Cordeiro Medeiros, daí que se alista como voluntária no Batalhão Periquitos como soldado Medeiros (sobrenome do cunhado).
A essa altura (1822), Maria Quitéria ainda era solteira e tinha 30 anos de idade. Quando o pai sabe de sua decisão tenta demovê-la, mas, já era tarde. A jovem alistada como se homem fosse é descoberta e passa a usar um saiote para diferenciar dos demais soldados. O Batalhão dos Periquitos comandado pelo major José Antonio da Silva Castro recebe a missão de guarnecer Nazaré, local onde residiam muitos portugueses, e depois a Ilha de Maré.
Pelo menos nos compendênios de história, como de Pereira Reis Júnior patrocinado pelo Ministério da Educação e Cultura, não há registros de embates entre o batalhão e as forças adeptas de Madeira de Melo no Recôncavo, assim como foram limitados os tais combates iniciais em Cachoeira, quando a canhoneira comandada pelo tenente Duplaquet bombardeou a cidade a mando do comandante português, em junho de 1822.
O poder de fogo da canhoneira era pequeno e não havia tropa de infantaria portuguesa para invadir e ocupar Cachoeira. Os tiros desferidos pelos canhões mal atingiram a murada e aproveitando-se da maré baixa cachoeiranos ocuparam a canhoneira e prenderam Duplaquet, havendo apenas a morte do tambor-mór José da Silva Soledade. Os canhões foram retirados da canhoneira e passaram a ser usados na defesa da cidade, caso Madeira mandasse mais tropas para o local. O comandante português, no entanto, sabia de suas limitações e precisava defender Salvador daí que isso não aconteceu.
Não dispondo de tropas regulares, a Junta Interina Conciliatória e de Defesa nomeada após o 25 de junho, data de aclamação do principe D. Pedro, em Cachoeira, organiza batalhões patrióticos e assim surge as Companhias Mavorte e Belona e os batalhões Cachoeirense e Voluntários do Príncipe, tropas sem treinamento adequado e com poucas armas. É nesse batalhão que Maria Quitéria se alista. Essa tropa é destacada para Nazaré, em 7 de julho, sem nunca ter feito uma manobra militar, para garantir a aclamação do príncipe. Mas antes mesmo de chegar ao local o major Silva Castro é informado de que Nazaré e Jaguaribe já haviam aderido ao príncipe. Os comerciantes portugueses locais pouco estavam interessados em saber se o governo seria comandado por Lisboa (Portugal) ou pelo Rio (Brasil), à ordem de Dom João ou de Dom Pedro. O importante, para eles, era manter seus negócios.
Em Nazaré, o batalhão dos Periquitos recebe instruções para seguir até Mutá, na contra-costa da Ilha de Itaparica, onde Silva Castro adoece e a tropa volta a Cachoeira. Não há embates. Dia 29 de outubro o batalhão é destacado para guarnecer a Ilha de Maré, outra rota que poderia servir de abastecimento em víveres às tropas de Mandeira, onde é cumpriada a missão, sem combate. Daí segue para Itapuã para reunir-se a Brigada da Esquerda, sob o comando do ten cel Felisberto Gomes Caldeira. Um dia depois da Batalha de Pirajá, portugueses tentam surpreender a esquerda brasileira pela estrada da Pituba e são rechaçados pelo Batalhão dos Periquitos, onde teria combatido Maria Quitéria.
Segundo os historiadores, esse teria sido o batismo de fogo de Quitéria. Os historiadores são imprecisos, não se sabe se ele deu algum tiro, sendo tudo narrado com penas de ufanismo, porém, sem precisão sobre as tais confrontos.
Com a retirada de Madeira de Melo e suas tropas (Divisão Auxiliadora) para Portugal, na madrugada de 2 de julho de 1823, embarque feito em 54 navios, sem transtornos, sem a “esquadra” do Lord Crochane ter coragem de atacar a partir de Morro de São Paulo, sem Lima e Silva e seus homens do Batalhão do Centro terem invadido a capital após Pirajá e prendido Madeira, o brigadeiro português zarpou para Lisboa, com todos os seus a salvo.
Registra-se que durante a contenda, Maria Quitéria se casa com o furriel (sargento do setor de logística) João José Luis. No dia 31 de março de 1823, o Conselho Interino do Governo da Provincia ordena em portaria que seja entregue um fardamento a João José e sua mulher Maria Quitéria, com praça de cadete, uma calça e um par de botões”. É provável que esse furriel tenha falecido durante algum combate, pois, terminadas as lutas pela Independência, Quitéria volta a ficar solteira.
Fim das lutas. O Batalhão dos Periquitos é designado para acampar no Convento de Santa Santa Tereza, em Salvador. A alferes Maria Quitéria manifesta ao general Lima e Silva desejo de beijar a mão do imperador dom Pedro I e tem autorização do ministro da Guerra, João Vieira de Carvalho. Embarca no navio Leal Portugues, no dia 29 de julho de 1823, navio comandada pelo segundo tenente Camilo Caetano. Segue Maria Quitéria juntamente com João Maria Peresi, tenente e ajudante de ordens do general Labatut; Luis Carlos Correa, tenente e ajudante de ordens do comandante da segunda divisão; Miguel Joquim de Andrade, capitão do batalhão do Imperador; e o cônego João José Damanasceno.
Chegam ao Rio no dia 19 de agosto e a 20 o imperador os recebem em audiência com todas as honras. Quitéria é condecorada com a insigna “Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro”, emblema que Dom Pedro coloca na blusa a altura do coração dizendo-lhe: “Queremos conceder a dona Maria Quitéria de Jesus um distintivo que assinale os serviços militares que, com denodo, raro entre os mais do seu sexo, prestara à causa da Independência deste Império, na porfiosa restauração da capital da Bahia. Hei por bem permitir-lhe o uso da insigna de Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro”.
Para custear sua viagem de volta o imperador mandou adiantar dois meses do seu salário no soldo de alferes. Quitéria retornou a Salvador em setembro de 1823, na Escuna “Nacional Carlota” trazendo consigo uma carta do imperador ao seu pai para que este lhe perdoasse.
De Salvador, a heroina se desloca até Cachoeira de vapor e depois segue de burro para a Serra da Agulha até a fazenda do seu pai onde é perdoada, em cerimônia que aconteceu na sala da casa de Gonçalo. Daí cumpre pedidos de visitas a Coração de Maria, Pedrão, Lustosa, Irará e outros povoados da região sendo objeto de atração como heroina.
Passada essa fase inicial de euforia, retorna a Serra da Agulha e volta a rotina de mulher do campo.
Casa-se com um lavrador do Rio do Peixe, Gabriel Pereira de Brito. Como dote, o pai lhe dá 100 mil reis de sua legitima parte, um escravo de nome Antonio avaliado em em 120.000 mil reis, mais um cavalo avaliado em 20 mil reis, uma novilha por cinco mil reis, que tudo faz a soma de 180.000 reis (Testamento de Gonçalo Alves de Almeida à folhas 108 do seu inventário do cartório do 1º oficio de Feira de Santana).
Com a morte do pai, em 1834, já em completo anonimato e sentindo a necessidade de haver bens familiares por herança, Quitéria reaparece em 22 de agosto de 1835 para reivindicar junto ao Cartório de Feira de Santana dotes que considerava do seu direito como filha legitima de Gonçalo. A viúva Maria de Britto, herdeira principal da fortuna do seu pai, também por direito, se contrapõe aos argumentos de Quitéria e outros filhos, e o processo dura quase 20 anos para ser concluido.
A burocracia cartorial, certamente afagos a procuradores e juizes feitos por Maria de Britto, fizeram com que Quitéria mudasse de procurador por 3 vezes. Ainda assim, o processo não andava. Quando andou, Quitéria estava quase cega, pobre, esquecida, viúva, e sem alguém que o protegesse, salvo uma filha que a ajudava. Finda a questão, em 1850, os bens de Gonçalo já tinha se evaporado, os escravos desaparecidos e Quitéria e a filha se mudam para Salvador onde passam a viver no distrito de Santana (Nazaré) com o soldo de alferes.
Morre no dia 21 de agosto de 1853 aos 61 anos de idade, de uma doença no figado. O presidente da Provincia Alvaro Tibério de Moncorvo e Lima apenas comunica ao Ministério da Guerra, Manuel Felizardo de Souza e Melo para extinguir seu soldo.
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* São José das Itapororocas pertenceu a Cachoeira até 1832 e foi sede de Feira de Santana até 1846. São José passou a ser distrito de Feira por decreto de 30/11/1938 e hoje se chama Maria Quitéria.
** Sepultamento de Maria Quitéria: “No dia 21 de agosto de 1853 na Freguesia de Santana do Sacramento da Bahia tendo recebido os socorros espirituais faleceu de inflamação do fígado aos 56 anos (na verdade 61 anos) Maria Quitéria de Jesus, que tinha posto de alferes e vencia soldo, a qual decentemente amortalhada com enterro Parocho de pluvial e sacristão, sepultou-se no cemitério contíguo a Igreja Matriz e para constar fiz assento em que me assino. Conego Joaquim Cajueiro de Campos, Vigario Colado” (Aquivo da Secretaria do Arcebispado, Livro de Óbitos da Freguesia de Santana).
*** Falta pesquisar como o culto a Maria Quitéria retornou a vida pública baiana nos festejos ao 2 de Julho. Pelo menos até a data de sua morte não havia qualquer referência a “heroina” de forma mais explicita.
****O grande feito de Maria Quitéria foi ter se alistado no Exército. Isso representou um pioneirismo. Sua participação no Batalhão vai de 7 de agosto de 1822 a 2 de julho de 1823, 11 meses, sem combates efetivos.