Em fevereiro desse ano, numa tarde em Cabuçu, praia que pertence a Baía de Todos os Santos, baía que foi denominada Kirimurê pelos índios tupinambás, após usufruir de uma sombra deliciosa ofertada por grandes árvores depois de uma longa caminhada ao sol, acompanhado de uma amiga acreana (sim, o Acre existe, é lindo, delicado e poderoso), assim que levantamos, a ouvi dizer: obrigado, povo em pé! Assustado, logo percebi que ela se referia as árvores e então veio a explicação risonha: é assim que os índios chamam as árvores.
Em 1993 quando estudei quase no final da Avenida Getúlio Vargas, lembro da infelicidade de ter que ir à escola e de segurar desesperadamente na reata da calça de meu pai na esperança da desistência de me entregar as professoras, com caras tão convidativas, que me deixavam desconfiado. Na volta, meu bisavô era o encarregado de me levar pra casa.
Esperávamos o ônibus da Autonida quase na porta da escola. Posso visualizar o trajeto como se fosse agora. No banco destinado aos idosos a viagem era bastante interessante. A avenida ainda não era completamente asfaltada como é hoje, então a parte calçada acrescentava uma batedeira espetacular ao velho coletivo circular, que produzia uma sinfonia excêntrica com janelas trepidando, o ronco da descarga, o converseiro da cobradora igual à nêga do leite, os assovios do meu amado bisavô acompanhados de seu abraço terno.
Fim de tarde, muitas árvores no canteiro central da grande avenida, pouquíssimos prédios na cidade até então bem mais horizontalizada do que agora. Um pôr do sol quase sempre bonito. A Getúlio me parecia tão cumprida e não havia Nóide nem a atual ligação com a Olímpio Vital. Antenados naquela altura deviam fazer do percurso na bela avenida um bom momento pra pensar na vida.
Era comum ter um ou outro conhecido no ônibus. Sou velho na Feira, dizia meu bisavô – quando questionado porque tantos cumprimentos. Foi nessa mesma Getúlio que ele viu o exército retirar Chico Pinto brutalmente do poder.
A possibilidade de um pesadelo chamado BRT surge 23 anos depois das minhas saudosas lembranças. O projeto ameaça destruir, em nome de um progresso (vazio, claramente), a mais bela avenida de minha terra, levando junto as árvores.
Eu, gente da Feira, desesperado com a ideia, resolvi caminhar nesse início de outubro pelo seu canteiro central. Quantas árvores de todos os tipos. Quantas flores de todas as cores. Um percevejo me pegou logo no início e seu cheiro só veio me largar no final da caminhada. Era a essência da Getúlio grudada em mim sem querer largar. Acreditei, sem titubear, que era um pedido de socorro da vida que pulsa ali. E é.
Uma rede social me trouxe essa tarde um vídeo de Carlos Pitta cantando músicas que ele fez pra Feira. Minha mãe, que também é gente da Feira, apresentou no SESI, ainda adolescente, “A Lenda do Pásssaro que Roubou o Fogo”, espetáculo que leva o nome do disco de Pitta, lançado em 83. O cantor feirense já se posicionou contra a devastação e questionou como vai ficar sua alma vai quando procurar os flamboyants da Getúlio durante a primavera.
Numa das canções ouvidas, nessa tarde que não tenho mais meu bisavô para refazer comigo os passeios pela Getúlio, há um verso que Pitta diz “aqui é a parte que me cabe dentro do universo”. Chorei copiosamente.
Não amar Feira resulta em querer destruir a Avenida Getúlio Vargas. Não ter uma história, não ter memórias, não ter laço afetivo com o local. Não ter identificação. Precisamos garantir a integridade das árvores e da avenida.
Precisamos exigir e garantir que nosso povo continue em pé e em paz!
foto de: Raymundo Luiz Lopes