Cínica é a pessoa que revela desprezo pelas convenções sociais, pela ética, pela moral e só defende o que lhe é conveniente. O cínico é mutante nos seus princípios. Pode ter desprezado um valor social ontem e defendê-lo ardorosamente hoje. Sempre de acordo com suas conveniências. Por isso o corolário – todo cínico é desonesto.
Getúlio Vargas foi um grande cínico. Quem descortinou esse traço mórbido do seu caráter foi o jornalista/escritor Lira Neto na trilogia biográfica que escreveu sobre o ditador/presidente. O coroamento de sua vida de embusteiro aconteceu quando autodenominou-se “pai dos pobres”. Para a oposição, era a mãe dos ricos. Ambivalente em princípios e ações, abraçou a muitos, apunhalou a todos: à direita e à esquerda. A ele importava a sua sobrevivência política e, por óbvio, a física.
Getúlio tinha guarda-costa truculento que penteava seus cabelos quando assanhados pelo vento; amantes e concubinas custeadas por propinas de magnatas que em troca recebiam favores do Estado (Banco do Brasil de ontem era o BNDES de hoje); cooptava ou repudiava intelectuais, artistas, jornalistas; usava máquinas de propaganda e tortura para anestesiar o povo e estropiar desafetos; inventava planos conspiratórios contra o país para justificar o autoritarismo permanente. Quando inquirido sobre os descalabros, tinha resposta pronta – não sabia de nada! Getúlio foi tudo isso e muito mais. Lira Neto desvenda o cinismo dos períodos Vargas nos seus livros que valem ser lidos. O cínico preferiu a porta do suicídio para não atravessar a da cadeia. Nessa decisão não foi seguido, infelizmente, por seu prosélito mais recente.
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Zé Luis dizia-se professor de Geografia. Nós, os alunos, não o considerávamos como tal. Na verdade, ele mesmo desmerecia suas aulas. Nelas, a física do globo e suas regiões importavam menos que as pregações estapafúrdias, chistes e piadas impudentes. Começando explicação sobre fusos horários, fez esquema no quadro de giz quando a colega Marinalva perguntou: –‘Cupia’ professor? Ele sarcástico, respondeu: – Não! Ronca! A galera do fundão foi ao delírio. A turma da frente só entendeu a piada após o recreio.
Zé Luis não gostava e falava mal dos heróis baianos da Guerra da Independência. Segundo ele, foram fabricados por necessidade. A heroína vestiu-se de homem para poder acompanhar um cabo sedutor despachado para as bandas de Cachoeira e São Félix, e o Corneteiro de Pirajá tocou a ordem errada porque estava borracho. Nas suas palavras, um português vira-casaca, safado, apreciador das mulheres negras e da “branquinha”. Passou de bêbado a herói porque a portuguesada correu de uma cavalaria que não existia. E pior – dizia ele – o sacripanta começou a acreditar que era herói mesmo. Concluía: – Só porrada!
Zé Luis compartilhava com o Corneteiro de Pirajá, Luis Lopes, o nome e o gosto pela pinga. Em algumas aulas a Terra lhe parecia girar mais do que deveria.
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A viatura parou bruscamente ao meu lado, a porta foi aberta de supetão e uma voz de dentro gritou: – Entra! Gelei! Atravessava a Praça da Bandeira ainda vazia no início de uma manhã de agosto 67, tempo frio nas ruas, mas quente na política dominada pelos militares. Caminhava preocupado, astuciando como pagar a gráfica para liberar o jornal semanário Situação que circulava em Feira, mas era impresso em Salvador. Em segundos imaginei todas as desgraças possíveis. O alívio veio com a pergunta – Quer carona?
Era a voz inconfundível de Everildo. O repórter policial do jornal que levava a atividade tão a sério que praticamente morava na delegacia. Era habitué do presídio e deslocava-se nos carros da polícia acompanhando diligências e rondas. Um personagem impagável, inesquecível. Conversava longamente com policiais, ladrões, assassinos, vítimas e, vez por outra, aconselhava o delegado Gilberto. Era uma espécie de Dr. Freud para a marginalidade. Para ele ladrões pormenorizavam roubos, assaltos; indicavam os receptadores e, como que pedindo absolvição, confidenciavam suas origens e dramas. Alguns pediam e conseguiam de Everildo a publicação de uma foto no jornal. Deixei o jornal no início de 68 para voltar a estudar, fazer vestibular em Salvador. Nunca mais tive contato com Everildo. Soube que tinha dado continuidade às suas atividades de repórter/jornalista na Chapada Diamantina, mas, fim do ano passado, seu coração rompeu a parceria com o cérebro inquieto e brilhante. Foi-se e deixou boas lembranças.
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Feira de Santana tem um filho muito ilustre do qual sou grande admirador. Divaldo Franco (1927 –), professor, orador, filantropo e figura singular na vida religiosa brasileira. Abraçou a doutrina espírita que tem milhões de seguidores entre nós e, assim como outro médium, Chico Xavier, tem enorme influência nesta comunidade. A Mansão do Caminho, obra de assistência/ promoção social, atende milhares de carentes. Os direitos autorais de seus mais de 250 livros psicografados, com mais de oito milhões de exemplares vendidos, foram doados em cartório para esta e outras instituições filantrópicas. Divaldo tem 92 anos e credita sua longevidade à Graça Divina que ainda lhe reserva muitas responsabilidades no mundo terreno. Caçoa de si mesmo e dos outros quando fala da morte que, para ele, como para todo espírita, é simples transição. No entanto, a pretexto de prestar-lhe uma homenagem, claramente extemporânea, a mediocridade cavou um buraco no meio de avenida e assentou placa com seu nome. Um túmulo prémorte. Muito agouro para pessoa tão especial e necessária.
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Certa vez, em programa de entrevista na televisão, o cientista social e grande observador da vida brasileira, Bolívar Lamounier (1943 –) definiu a atividade política no Brasil como uma peça de teatro com um roteiro deplorável, personagens canastrões, atores sofríveis e plateia ignara. Os fatos do pretérito recente, do presente e, sem pretender ser fatalista, do futuro, cobrem o sociólogo de razões. O elenco abriga ex-Presidentes presos por ladroagem, corrupção; uma outra, presidenta por estupidez e incompetência; governadores, senadores, deputados, prefeitos, naipe completo de bandidos, delinquentes, roedores dos recursos do erário e seus asseclas, parceiros – ministros, empresários, advogados – enfim, a alta roda, a fina flor da marginalidade. É verdade que peças assim já foram apresentadas no palco do Teatro Brasil. A maioria dos brasileiros não conhece sua história verdadeira. Quando muito, é informada com fatos distorcidos, fantasiosos, de acordo com a ideologia dominante. O período getulista foi nefasto e trágico. A década petista repetiu a novela dantesca em dose cavalar. Sobre os livros mencionados Lula declarou: “Poucas vezes vi alguém descrever tão bem a história de Getúlio Vargas e do povo gaúcho como Lira Neto. Na primeira parte da sua trilogia, foi tão impactante para mim que me vi andando como Getúlio, fumando um charuto pela Rua da Praia em Porto Alegre”. Almas Gêmeas! Talvez ainda se encontrem em outra dimensão. Nesta em que vivemos careceria de ajuda mediúnica. O encontro seria benéfico ao país? Deus sabe!! Diria minha avó Emília.
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Na última eleição o país fez um avanço. Saiu da certeza do desastre para a incerteza do sucesso. Incerteza porque, tal qual o corneteiro descompreendido, o protagonista da mudança acredita que o país deve a ele, e somente a ele, o benfeito. Não consegue enxergar que a maioria da população não o escolheu por seus méritos, pela sua capacidade. Não votou a seu favor, mas contra seu oponente. O fato é que se o novo Presidente tivesse a compreensão das suas limitações intelectuais e delegasse o gerenciamento do governo a pessoas mais habilitadas, preparadas, comprometidas com seu ideário de candidato, o país teria avançado muito mais na redução dos problemas graves que vivencia.
Corneteiro e Presidente, dois heróis de araque.
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Fim do ano passado a cidade tomou conhecimento de que uma quadrilha saqueava os recursos públicos destinados à saúde dos munícipes. A falcatrua era realizada através da contratação de cooperativas que superfaturavam contratos e ainda assim venciam concorrências ou eram graciosamente dispensadas das mesmas pelos prepostos municipais. Foram centenas de milhões de reais roubados em mais de uma década. O povo humilde, carente de recursos para pagar consultas, exames e tratamentos foi espoliado pelos vampiros que lhes sugaram o sangue e a vida durante esse tempo. Crianças, jovens, velhos foram depauperados pela falta dos recursos desviados para enriquecimento ilícito e ostentação despudorada dos corruptos, dos larápios. Gente que ontem posava de honesta, proba, e hoje merece a ojeriza da sociedade. O MPE, polícias federal e estadual, órgãos de combate à corrupção formaram a força tarefa que prendeu os bandidos. Surpreendentemente prenderam inicialmente os corruptos. A informação prestada à sociedade garantia que em seguida seriam presos os corrompidos. Passados mais de seis meses não há notícias de que os facilitadores e naturalmente receptadores de parte do butim tenham sido encontrados. Da mesma forma, parecem ter evaporado as centenas de milhões provenientes dos saques. Criou-se, assim, uma situação juridicamente insustentável porque esdrúxula. Os corruptores estão presos, porém não há corrompidos. Aparentemente as autoridades estão encontrando dificuldades para localizar os idealizadores/apoiadores do esquema criminoso. Dificuldades estranhas porque o rol de suspeitos, em todos os escalões, é muito reduzido. Os mais graduados alardeavam e defendiam em rádios e jornais a utilidade do cooperativismo nos serviços de saúde municipal. No passado, problemas de roubo com soluções tão óbvias eram resolvidos rapidamente pelo delegado Gilberto após consulta ao jornalista investigativo Everildo. Poderiam eles – na outra dimensão – resolver esse imbróglio?
O ilustre Divaldo nos daria essa resposta? A verdade é que o Brasil, particularmente, Feira de Santana, vivem tempos difíceis, até para ele – julgo eu – pessoa com vasto entendimento e compreensão da natureza humana. Assim, abomino desde logo o pedido de ajuda. Creio que é melhor afastá-lo de terreno tão soturno. Deixemos em paz essa criatura misericordiosa , generosa, benfazeja. Um verdadeiro contraponto aos biltres que circulam pela cidade com empáfia e cinismo, que só o sentimento de impunidade assegura.
Prof. Teomar Soledade Júnior