Méritos
Em maio de 2002, em corrida de Fórmula 1 na Áustria, o piloto brasileiro Rubens Barrichello desacelerou o carro para entregar o primeiro lugar ao alemão Michael Shumacher. A escuderia Ferrari ordenara a manobra. Foi um constrangimento geral inclusive para os pilotos envolvidos. Os organizadores do torneio pediram desculpas e asseguraram que nunca mais o fato se repetiria. Deveriam ter corrigido a lambança; não o fizeram. O regime de mérito, princípio basilar da disputa, foi desprezado. Até hoje paira desconfiança sobre a Fórmula 1. Prêmio sem mérito não tem valor, este é o senso comum. Fatos como esses reduzem a credibilidade e interesse por qualquer torneio.
Se os responsáveis pela Fórmula 1 estabelecessem que, em todas as corridas, deveria haver a participação de pilotos negros, índios, esquimós etc, a medida, embora esdrúxula, poderia até parecer simpática a alguns. Se, além disso, estipulassem que ao menos um representante dessas etnias deveria subir ao pódio independente da posição conquistada na linha de chegada, o torneio ficaria ridicularizado assim como os pilotos étnicos. Não foi sem razão que o campeão Shumacher ficou constrangido na Áustria em 2002 e ofereceu o lugar mais alto do pódio a Barrichello.
Atletas negros, como Jesse Owens, Michael Johnson, Usain Bolt e muitos outros, obtiveram marcas espetaculares nos Jogos Olímpicos em que participaram como corredores. Maratonas internacionais têm revelado um grande número de fundistas quenianos. Eles são concorrentes temidos inclusive aqui no Brasil. O fato, ainda inexplicado cientificamente, é que os homens negros se destacam em esportes que requerem resistência. As hipóteses mais sensatas a firmam que , nesta vantagem, há componentes genéticos e culturais. Alheios à discussão, os negros vão acumulando honrosas vitórias e merecidos aplausos. Eles ganham competindo honestamente, sem subterfúgios. Imagine-se agora que autoridades esportivas queiram introduzir um pequeno avanço na saída para brancos e asiáticos de modo a compensar uma possível – ainda não provada cientificamente – supremacia natural negra. Todos concordamos: seria um grande despautério. Ruiria o regime de mérito e com a imposição, o sentido de justiça. A vitória sem mérito avilta a quem tem caráter.
Bônus
Na Fórmula 1 as máquinas são muito parecidas. Aaerodinâmica, o motor, os recursos básicos são quase idênticos. As diferenças mais significativas nas corridas ficam por conta das configurações das pistas e, em algumas delas, exclusivamente das habilidades dos pilotos. O circuito de Monte Carlo, por ser urbano, é exemplo típico. Ali o mérito maior é do piloto. No caso de circuitos com grandes retas, pequenas alterações nas máquinas ganham importância. O torneio fica equilibrado porque tem pistas com traçados diversos. Assim, os melhores pilotos são apontados pelas vitórias obtidas durante o torneio. Se a diferença entre as máquinas fosse muito grande, como entre um Celta e um Camaro, por exemplo, e além disso os carros cruzassem a linha de chegada muito próximos um do outro – o carrão chega na frente mas logo atrás chega o carrinho – seria complicado escolher o piloto vencedor. O que os organizadores deveriam fazer? O que nosso senso de justiça sugere?
Antes de emitir parecer, vamos humildemente relembrar a aula do acadêmico e ex-ministro da educação, Eduardo Portela. Em declaração à imprensa, há muitos anos, ele esclareceu o caráter de permanência do verbo SER e a transitoriedade do verbo ESTAR. Quando dizemos fulano é doente supõe-se que a doença é perene, vai estar com ele durante toda a vida. Se, ao contrário, afirmamos fulano está doente, a presunção é de ma passageiro. Brevemente ele estará curado. Voltando à corrida, o piloto do carrinho está em desvantagem. É uma situação desfavorável, porém fugaz. Se conseguir, por algum meio, trocar de carro, dirigir um carrão, suas limitações acabam. Como equalizar a disputa sem quebrar o regime de mérito, revelando os melhores pilotos, estejam eles dirigindo carrinhos ou carrões?
Empresas, universidades e órgãos financiadores vivem problemas parecidos. Precisam selecionar pessoas e projetos com origens e suportes diferentes. Candidatos a vagas com históricos familiares e pessoais diversos; alunos oriundos de escolas públicas e particulares; projetos concebidos em comunidades muito carentes e tantas outras limitações efêmeras. A solução aparece na forma de bônus. São acrescidos 5, 10 ou 15% na pontuação final a título de compensação pela situação temporária adversa do concorrente. Deste modo, o piloto do carrinho pode ser declarado campeão mesmo chegando logo atrás do carrão; o candidato parcial e provisoriamente desprovido pode conseguir seu emprego e fazer melhor trabalho que os mais bem pontuados; alunos de escolas públicas podem ser classificados em universidades em razão de bonificações; recursos podem ser alocados em comunidades que, a despeito dos percalços, pretendem enfrentar e sanear seus problemas. Tudo isso sem ferir o mérito. Ao contrário, reforçando-o.
Cotas
Todos já ouvimos alguém mencionar alguns destes nomes: Aleijadinho, Beethoven, Agatha Christie, Louis Braille, Galileu Galilei , Franklin Roosevelt, Stephen Hawking. O que estas e outras inúmeras personalidades têm em comum além da fama? Todas elas padeceram ou padecem de limitações físicas e souberam superá-las. Escreveram seus nomes na história. Uns com mais ou menos dificuldades, mas a luta para reduzir a dependência foi objetivo constante em suas vidas. Stephen Hawking diz: “A deficiência não precisa ser um obstáculo para o sucesso. Durante praticamente toda a minha vida adulta sofri da doença do neurônio motor. Mesmo assim, isso não me impediu de ter uma destacada carreira como astrofísico e uma vida familiar feliz. Mas sei que sou muito sortudo, em muitos aspectos. Meu sucesso em física teórica me assegura apoio para viver uma vida que vale a pena. É claro que a maioria das pessoas com deficiência no mundo tem extrema dificuldade até mesmo para sobreviver a cada dia, quanto mais para ter uma vida produtiva e de realização pessoal.”
A Organização Mundial da Saúde estima que mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivem com alguma forma de deficiência dentre as quais cerca de 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis. A maioria absoluta deste contingente é de pobres. O físico Hawking fez um apelo em favor destas pessoas: “De fato, temos a obrigação moral de remover as barreiras à participação e de investir recursos financeiros e conhecimento suficiente para liberar o vasto potencial das pessoas com deficiência. Os governantes de todo o mundo não podem mais negligenciar as centenas de milhões de pessoas com deficiência cujo acesso à saúde, reabilitação, suporte, educação e emprego tem sido negado, e que nunca tiveram a oportunidade de brilhar.”
No Brasil, governos, instituições públicas e privadas têm desenvolvido políticas de apoio aos deficientes. Elas se materializam na utilização de tecnologias e sobretudo no estabelecimento de prioridades. As legislações que definem cotas para a educação, o emprego e o lazer facilitam o convívio social. No plano individual dinamizam a vida do deficiente, pois reduzem suas limitações. Cotas e priorizações para pessoas com limitações permanentes, aplicadas com bom senso, sem demagogia nem pieguismo, elevam a estima dos favorecidos. Assim, elas nascem da solidariedade e não da comiseração. Não devem ser simples gesto humanitário, mas exercício de cidadania.
Prof. Teomar Soleade Jr.
Publicado originalmente em 2016