por Socorro Pitombo*
Ele é considerado a própria essência do cangaço. Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião, já foi tema de inúmeras publicações, novelas, filmes, seriados, músicas e folhetos de cordel. Personagem mítico e controvertido, ele continua vivo no imaginário popular do sertanejo, amado por uns, odiado por outros.
Um fenômeno do banditismo? herói lendário? Essa já desgastada polêmica dá lugar a um personagem definido como “o mais puro e cruel representante do tosco e desumano liberalismo brasileiro”. É assim que o Rei do Cangaço é apresentado no livro Um repórter do futuro no bando de Lampião, escrito pelo jornalista Marcondes Araújo.
Curiosamente, essa figura fascinante da história brasileira, acusada de roubar políticos e coronéis, atacar fazendas e povoados e sobretudo de encomendar a alma de muita gente, só não foi lembrada na literatura, o que acontece agora, com a publicação de Marcondes Araújo, que foi buscar nas lembranças da sua família, inspiração para compor a obra.
Com uma escrita fácil e atraente, que prende a atenção do leitor logo nas primeiras páginas, ele utiliza o recurso da intertextualidade como fio condutor da narrativa. Para tanto, vai inserindo no enredo recortes de textos literários, dos mais variados autores, entre os quais Chico Buarque de Holanda, Glauber Rocha, Guimarães Rosa, Sergio Ricardo, Luiz Gonzaga, além de Tom Zé, Torquato Neto, Alceu Valença, Kafka, Nietzsche e Geraldo Vandré.
Baseada em fatos reais, entremeada com fantasia onírica, a história contada no romance de Marcondes Araújo, surgiu dos casos que ouviu desde criança, contados por sua mãe, Maria Clara. O pai dela, João Gomes da Silva, conhecido como João da Mata, selou o cavalo do bandoleiro. Ela conheceu pessoalmente o Rei do Cangaço, quando tinha 12 anos, no povoado Serra dos Morgados. Ali, o cangaceiro pernoitou, rumando em seguida para Brejão da Caatinga, onde matou seis soldados, na praça do vilarejo.
O trabalho é resultado de minuciosa pesquisa em livros e documentos, que se estendeu por cerca de três anos, com algumas interrupções, incluindo a produção do texto. Com 265 páginas, o livro é uma auto – publicação pela Amazon. A capa é de João França, com foto assinada por Lauro Cabral de Oliveira.
Diferente do que se sabe até hoje sobre Lampião, o romance mostra não apenas a figura perversa do todo poderoso chefe do cangaço, que espalhou o terror e o medo em terras da Bahia, Pernambuco e Alagoas e acabou degolado na Grota do Angico, no sertão de Sergipe; mas também o lado humano de Virgulino, que tinha o hábito de rezar sempre ao cair da tarde, mesmo que estivesse sob o mais renhido combate.
Além disso, trazia sempre consigo uns patuás, que guardava nos embornais, demonstrando uma religiosidade escondida sob a capa da crueldade. Aliás, como é da própria natureza do ser humano, o bem e o mal caminham lado a lado. Tanto é assim que Lampião quase abandona a carreira criminosa, o que não aconteceu porque teria sido traído pelo coronel Petronílio Reis, influente proprietário de terras no Norte da Bahia, em cuja fazenda esteve hospedado durante quatro meses, como revela a narrativa.
Tudo começou quando o suposto jornalista, Aparício Vieira, chegou à vila de Santo Antônio da Glória, situada nas proximidades das divisas com Pernambuco, Alagoas e Sergipe, para um encontro com o coronel Petronílio Alcântara Reis, intendente do lugar e um dos maiores fazendeiros e chefes políticos de todo o Nordeste da Bahia.
Ele se aproximou do coronel com o pretexto de fazer uma entrevista com Lampião para a revista O Cruzeiro, publicação que seria lançada em breve no Rio de Janeiro e da qual era correspondente em Feira de Santana. A partir daí, o personagem do jornalista vive as mais incríveis aventuras que o projetam no tempo: do passado ao futuro, até voltar ao presente no final da narrativa.
Nas suas andanças pelo interior do sertão, o personagem faz uma regressão no tempo, ao reconhecer a própria mãe, ainda menina, escondida por trás de um grupo de mulheres. Ela olha para ele furtivamente entre curiosa e encabulada, mas sem saber que um dia ele seria o seu filho. Esse episódio fantasioso vem juntar-se a um outro não menos intrigante, quando os moradores da vila, juntamente com os cangaceiros varam a madrugada dançando como autômatos, ao som do xaxado, como se estivessem em transe. Ao acordar no dia seguinte, o jornalista não consegue discernir entre sonho e realidade.
Durante a sua permanência na Vila e na fazenda Gangorra, uma das propriedades do coronel, ele acompanha o dia-a-dia do chefe do cangaço, de quem vai se aproximando cada vez mais, com o pretexto da entrevista. Na verdade, queria apenas conhecer de perto aquela figura lendária, cuja fama de perversidade atravessara as fronteiras do país.
Como visitante ilustre, pois não era comum aparecer por ali um jornalista, Aparício Vieira, aproveitou para conhecer de perto outros moradores do lugar, como João Cambaio, um dos seguidores de Antônio Conselheiro, ex-combatente da guerra de Canudos, que agora vivia recluso em seu casebre, remoendo a perda de familiares e o remorso de não ter lutado até o fim para protegê-los.
Ao contar as proezas de Lampião pelas terras nordestinas, o autor nos dá toda uma dimensão histórica, indo buscar não só o relato da guerra de Canudos, como também a luta da Coluna Prestes, mostrando o que seria, através do personagem Viriato Cedraz – o caixeiro-viajante e bem falante -, a revolução dos camponeses contra os grandes latifundiários.
Outro aspecto interessante no livro é a forma como vão se delineando os personagens secundários. São figuras emblemáticas do cangaço, a exemplo de Ezequiel Ponto Fino, sujeitinho antipático e arrogante, que se prevalecia da condição de irmão do rei do cangaço para arrotar valentia. Volta e meia, se envolvia em confusão, principalmente com as mocinhas da roça, usando a força para conquistá-las.
Havia também o Anacleto, conhecido como Deus-te-guie. Cangaceiro neófito e muito medroso, logo cedo entendeu que não tinha vocação para aquela vida estropiada e cheia de perigos. Mariano, o artista do grupo, querido por todos por ser bom cantor e tocador de sanfona e violão.
Afora os cangaceiros, se impõe a figura de Madalena, a filha esquisita do coronel, que diziam virava mula-sem-cabeça, nas noites de lua cheia. Zeca Mendonça, o dono da venda em Itumirim, em cuja porta permanece inscrita como patrimônio histórico do lugar, a frase “Capitão Virgulino mira bem”, feita pelo próprio Lampião, para lembrar que era bom atirador.
Entrevista conseguida estava na hora de voltar para o outro mundo. Esporeando o cavalo, ele gritou para Anacleto, “é agora”. E os dois saltaram para a janela tremeluzente, ali desaparecendo por entre uma enorme instalação, feita de mantas de couro de boi enroladas em varas retas e compridas enfiadas no chão e apontadas para o céu em diversas direções. Era a arte de Juraci Dórea, e foi por dentro dela que os dois desapareceram.
Marcondes Araújo é jornalista, com vários livros publicados, entre contos e microcontos. Além desse romance, ele nos acena com outra publicação do gênero, ainda inédita, Memórias de um possível vencedor e de mais dois livros de contos também ainda inéditos, Histórias cruéis da infância e Contos Fantásticos.
Socorro Pitombo é jornalista
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