Antigamente uma parte dos brasileiros cultivava a ilusão de que a vida das pessoas chamadas “de bem” – na média, a classe média branca – tinha importância. A banalização da morte – sobretudo aquela promovida pelo Estado, por meio de suas polícias – alcançava apenas a estigmatizada bandidagem e aqueles infelizes que, por azar, são pobres e residem nos ambientes em que viceja a marginalidade. Noutras palavras, morria a gente da periferia, preta, pobre e analfabeta. Eram as vidas que, numa aceitação tácita, podiam ser sacrificadas.
A pandemia do novo coronavírus subverteu, em parte, essa lógica. Segue morrendo muita gente nas favelas e bolsões de pobreza com o Covid-19. Mas aquela importância teatral que se atribuía à vida da classe média foi para a vala. Literalmente. Afinal, o que é que significa o afã em retomar logo as atividades econômicas, botar todo mundo para trabalhar, mesmo com a pandemia colhendo seu milhar de mortos quase todo dia?
Muita gente de classe média, acostumada a viajar para a Europa, contraiu o Covid-19 e morreu. Qual foi a reação oficial? “Gripezinha”, “E daí?”, e “Todo mundo morre um dia”, só para ficar nas tristes – e mais cruéis – referências. É bom lembrar que, noutros tempos, havia respeito e luto quando morria a gente branca, bem-nascida. É o que se via quando caía um avião ou naquele incêndio da Boate Kiss, lá no Rio Grande do Sul.
Isso acabou. A pressão pela retomada das atividades econômicas é agressiva. Sabe-se que muito mais gente vai se contaminar e morrer. Inclusive o chamado “cidadão de bem”. Inclusive, também, a classe média. Mas não importa: a pulsão genocida que ascendeu no Brasil nos últimos anos não respeita mais endereço, cor de pele, nem classe social. Morra quem tiver de morrer, desde que a economia funcione, que haja produção. Um milhão pode morrer? Não importa! A economia se sobrepõe à saúde e à própria vida. E o projeto reeleitoral de Jair Bolsonaro, o “mito”, também.
O diabo vem zombando do Brasil com muita frequência. Quis o trágico destino que o horror ascendesse ao poder ano passado. E que a maior crise de saúde pública em um século acossasse o brasileiro no meio do caos administrativo, da balbúrdia ideológica, do desgoverno conduzido por paspalhões e incompetentes.
O horror é tamanho que até mesmo a classe média – sempre poupada das agruras que afligem os mais pobres – foi tragada. A pandemia do Covid-19 traz uma contundente lição para o brasileiro: a vida, aqui, não vale nada. Agora, nem mesmo a da classe média. Quem quiser, que se vire para sobreviver sozinho porque o País não tem governo e ajuda não cai do céu.
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