“2 DE JUNHO Amanheceu fazendo frio. Acendi o fogo e mandei o João ir comprar pão e café. O pão, o Chico do Mercadinho cortou um pedaço. Eu chinguei o Chico de ordinário, cachorro (…) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal”.
O trecho acima é do livro “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Foi lançado em 1960. Está completando, portanto, 60 anos. Li-o não faz muito tempo: há um ou dois anos. Considero-me um leitor experiente: há décadas dedico-me à leitura e à escrita profissional. Até me debruçar sobre a obra – tive acesso a uma versão da primeira edição, em formato .pdf – julgava que pouca coisa poderia me surpreender, pelo inusitado, em matéria literária. Pois bem: aquela obra me desconcertou. Li, com voracidade, em duas noites, em casa.
O fio condutor do livro é a luta para conseguir comida na cidade de São Paulo, de meados da década de 1950. Transbordando em cada linha dessa epopeia, há a vida. Carolina catava papelão, metal, qualquer coisa que se transformasse em parcos cruzeiros para alimentar-se e alimentar os três filhos. Vivia num barracão numa favela às margens do rio Tietê, no Canindé, na Zona Norte paulistana. Com as obras para a construção da Marginal, a favela foi extinta.
Quem a descobriu foi o jornalista Audálio Dantas, que apareceu ali para fazer uma matéria sobre a favela. Apresentado à autora e a seus diários, os escritos crus de Carolina originaram a reportagem. Dela, saltaram para o livro de estreia – Quarto de Despejo – que alcançou sucesso imediato. Nos anos seguintes a primeira escritora negra brasileira lançou outros livros, experimentou o sucesso e algum conforto material, embora efêmero. Morreu em 1977, praticamente esquecida, numa chácara que conseguira comprar no extremo da Zona Sul da capital.
A fome é amarela, definiu com propriedade Carolina Maria de Jesus, em seus diários. Ela era, sem dúvida, uma personalidade ímpar: apesar de todo o embrutecimento que as condições de vida tentavam lhe impor, ela entornava poesia. A lua, a noite e as estrelas, os dias frios de céu claro, o canto dos pássaros, o sol cálido, nada do poético passava despercebido. Nem mesmo as garoas persistentes e os dias cinzentos, que a desanimavam. Afinal, aquilo a impedia de deslocar-se pelas avenidas Tiradentes ou Cruzeiro do Sul para recolher recicláveis.
Soube que críticos literários polemizaram tentando enfiá-la numa dessas bainhas ideológicas que fazem tanto sucesso hoje. E que, naqueles tempos, faziam também, óbvio. Carolina de Jesus, nesse aspecto, aproximava-se muito do pobre, do favelado médio que até hoje viceja pelas periferias e bolsões de pobreza brasileiros: alimentava fugazes encantamentos, que costumam ser sucedidos por amargas desilusões. Há muito disso, sobre os políticos, no seu livro de estreia.
Há muitos outros aspectos da obra da escritora mineira – ela nasceu no interior de Minas Gerais – que podem ser explorados. É inútil tentar esgotá-la num texto curto, de vigor efêmero. Mas é necessário ressaltar que Carolina de Jesus e sua literatura incandescente permanecem vivas até hoje. Sobretudo nos tormentosos momentos que o mundo – e, particularmente, o Brasil – atravessam.
Vale a pena revistar Carolina Maria, reler – ou ler, para quem não a conhece – Quarto de Despejo nesse aniversário de 60 anos. É a crônica contundente de um Brasil do passado que eternizasse no presente e que, se vacilarmos, vai se perpetuar futuro afora…
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