Antenado na onda de derrubar (e queimar) estátuas de escravagistas e colonizadores, um amigo me pergunta se em Feira de Santana existe alguma merecedora dessa ação, excessivamente radical e danosa para uns, legítima e oportuna para outros.
Lhe digo que não me ocorrem…a cidade possui alguns bustos de coronéis rurais do século passado, de figuras políticas contemporâneas, de Getúlio Vargas, e a única estátua de corpo inteiro, a de padre Ovídio de São Boaventura, mas não podem ser, exatamente, consideradas homenagens ao escravagismo., apesar de, alguns personagens terem sido herdeiros ideológicos do poder conferido aos donos de escravos sobre as pessoas e coisas.
Não era o caso, mas lembrei-lhe, se o intuito é atacar um passado cruel, que o nome da praça do Feiraguay, que não tem estátua, continua sendo Emílio Garrastazu Médici, o ditador do período mais terrível do autoritarismo nascido em 1964….
Mas é de estátuas e escravagistas que falamos, e a ditadura militar, agora mais do que nunca, tem defensores poderosos e institucionais. Se em passado recente já se tentou mudar o nome dessa praça sem sucesso, imaginemos agora…
Mas lhe adverti que tem na Feira um símbolo silencioso e invisível muito mais poderoso do que estátuas e bustos de bronze nas praças: a rejeição histórica a Lucas da Feira, que tornou-se sinônimo de banditismo ao invés de rebeldia escrava.
O cancelamento de Lucas é uma estátua imaterial em homenagem ao escravagismo.
A Feira à margem, a periférica, conseguiu homenagear até George Américo, um outsider, com um busto no bairro que tem seu nome, mas Lucas não, esse não, esse nunca! Nem uma rua, nenhuma menção.
“Nós deveríamos esquecer’, me disse uma vez um rico comerciante ao mencionar esse assunto.
Essa estátua imaterial ao escravagismo é a grande homenagem à escravidão que existe em Feira. E é muito difícil derrubá-la pois seu bronze é feito de teias sociológicas e hereditárias muito complexas e próximas para serem devastadas com um simples empurrão e jogadas às águas do rio Jacuípe.
Para derrubá-la ressignificar Lucas, haveria que se reconceituar modelos sociológicos plenamente aceitos nos círculos acadêmicos que classificam o escravo fugido do padre José Alves Franco (que é nome de rua…) como cangaceiro.
E a Feira não teve ainda fôlego intelectual para isso, no que pesem alguns, miúdos, esforços da sua mais representativa universidade, a UEFS.
Quem inseriu Lucas nessa classificação foi ninguém menos que Maria Isaura Pereira de Queiroz, uma espécie de mãe da sociologia brasileira, internacionalmente reconhecida, e falecida em 2018 aos 100 anos de idade. Um ícone da academia brasileira, praticamente intocável pelo volume de sua obra e contribuição ao pensamento nacional.
Zumbi e tantas outras figuras que estiveram apagadas durante longo tempo foram resgatadas como personagens da luta contra o sistema escravagista, tornados ou referendados como quilombolas, mas Lucas não!
Quem iria, ou irá, revisar a classificação de Maria Isaura? nossa pobre historiografia local? cambaleando entre datas de origem do burgo, garimpando letras em jornais reacionários, repisando dados de Poppino? Quem teria o peso acadêmico para se contrapor a esse epitáfio – aqui jaz um cangaceiro – que condena Lucas à folclorização e vulgaridades?