Os dados disponíveis até o momento revelam que Feira de Santana tem ido na contramão da pandemia, pelo menos no quesito arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicações (ICMS). Em 2020, até o mês de setembro, o município acumula R$ 742,9 milhões de arrecadação de ICMS, o que representa um aumento nominal de 12,2% (ou R$ 81 milhões) em relação aos nove primeiros meses do ano anterior. Nos meses de agosto e setembro, especificamente, este aumento de arrecadação foi bastante expressivo, sendo que em agosto foi de 22,9% e em setembro foi de 44,3%, sempre em relação ao mesmo período do ano anterior. Este crescimento de dois dígitos fez com que a participação do ICMS arrecadado em Feira em relação ao total arrecadado no estado da Bahia passasse de 3,64% para 4,84% nos últimos 12 meses. É importante ressaltar que Feira de Santana contribui com aproximadamente 5% do PIB estadual, segundo os dados do IBGE, e com 6,5% do estoque de emprego formal na Bahia, de acordo com informações recentemente divulgadas no Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados.
Este aumento de arrecadação de ICMS no município a uma taxa superior à observada na Bahia é um fenômeno intrigante, especialmente por causa do contexto marcado por uma crise sanitária de larga escala, que exigiu distanciamento/isolamento social e levou a uma suspensão temporária de algumas atividades produtivas, especialmente no setor de serviços. É de se esperar que estes choques de demanda e de oferta causem uma queda tanto na atividade econômica quanto na arrecadação de impostos diretos e indiretos, como acontece no país. No entanto, como em Feira de Santana só houve queda de arrecadação de ICMS nos meses de abril e maio, qualquer tentativa de se explicar a dinâmica recente da arrecadação de ICMS nas terras feirenses é bem-vinda. Neste sentido, pensamos em três explicações potencialmente promissoras, e não excludentes, para o crescimento robusto da arrecadação de ICMS em Feira mesmo em tempos de pandemia, a saber: o uso mais expressivo do cartão de débito/crédito, o montante do auxílio emergencial para a população de baixa renda e a estrutura setorial da economia local.
Sobre o uso mais expressivo do cartão de crédito, temos que neste período marcado pelo distanciamento e isolamento social as pessoas têm evitado sair de suas residências e, consequentemente, aumentaram as compras de maneira online. Como se sabe, compras online geralmente são realizadas por meio de cartão crédito ou débito em conta, e esta modalidade de pagamentos faz com que as administradoras de cartão sejam obrigadas a prestar contas à Receita Federal mediante a entrega da Declaração de Operações com Cartões de Crédito (Decred). Elas devem também, quando requisitado pela Secretaria Estadual da Fazenda (SEFAZ), disponibilizar as informações dos contribuintes. O aumento deste tipo de transações, portanto, tem o potencial de contribuir para o aumento de arrecadação do ICMS em Feira de Santana mesmo com a atividade econômica em queda: o aumento do faturamento formalizado pelas empresas pode ter sido compensado, ao menos parcialmente, pela queda do faturamento não formalizado. Neste quesito, é importante ressaltar que de acordo com documento publicado pela SEFAZ em 14/08/2020, o município ficou em segundo lugar, no mês junho, no ranking do número de Notas Fiscais de Consumidor Eletrônica: foram 3,76 milhões de notas emitidas.
Sobre o Auxílio Emergencial, disponibilizado pelo Governo Federal, os dados do Ministério da Cidadania sugerem que até o último mês de agosto Feira de Santana tinha 182 mil beneficiários e que cerca de R$ 532,8 milhões foram injetados na economia feirense por conta deste auxílio. De fato, este benefício médio de R$ 2.927 por beneficiário, até agosto, compensou a queda da atividade econômica puxada pela pandemia e deu um impulso positivo na arrecadação e impostos indiretos, incluindo o ICMS. Se a perda de renda do trabalho em Feira de Santana foi mais do que compensada pelo aumento de recursos provenientes do auxílio emergencial, é de se esperar que, em termos agregados, a arrecadação de impostos aumente com a pandemia, ao invés de cair, como seria o esperado à primeira vista. Não sabemos, entretanto, quanto da renda do trabalho (massa salarial) foi perdida ao longo de 2020 para fazermos esta comparação de maneira mais detalhada, especialmente por causa da ausência de dados do setor informal, mas os dados do emprego formal revelam que, até agosto, foram destruídos 3.982 postos de trabalho no município. Portanto, a julgar pelos dados do mercado de trabalho formal, que possui um estoque de aproximadamente 108 mil trabalhadores, é improvável que a perda de renda do trabalho por conta do desemprego tenha sido superior à injeção de recursos provenientes do auxílio emergencial.
Por fim, sobre a questão setorial, é de conhecimento geral que Feira de Santana é referência na Bahia no setor de comércio, tanto varejista quanto atacadista. De fato, os dados do Cadastro Central de Empresas, disponibilizados pelo IBGE, revelam que em 2018 as unidades empresariais classificadas no setor de comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas correspondiam por 47,5% de todas as empresas da cidade. Na capital do Estado, por exemplo, as empresas desse setor representavam apenas 32,5% do total, implicando que o comércio de Feira é maior, em termos relativos, que o comércio de Salvador. Ademais, de acordo com informações recentemente publicadas pela Receita Federal, grande parte da arrecadação no país em 2020 tem se concentrado em torno de cinco atividades classificadas segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). Destas, a atividade de comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas correspondeu a aproximadamente 16% de toda a arrecadação (exceto receitas previdenciárias), o que é um valor bastante expressivo. Os preços do atacado, insumos básicos e alimentos também têm crescido muito neste ano, inclusive muito acima dos preços (de bens e serviços) ao consumidor amplo, que geralmente são medidos por meio do IPCA. Este movimento nos preços de setores específicos faz com que, dado um dado nível específico de demanda/vendas, o faturamento das empresas desses setores aumente, causando mais arrecadação de impostos. Neste sentido, dado que a economia feirense possui alta participação em pelo menos um dos grandes setores que foi pouco afetado pela crise sanitária, por ter sido enquadrado como essencial, e ainda com o benefício do aumento expressivo dos preços, não é equivocado afirmar que a distribuição setorial da economia local também seja uma explicação importante para o aumento da arrecadação de ICMS neste ano de pandemia.
Cleiton Silva de Jesus é Professor Titular de Economia na UEFS
Tânia Cristina Azevedo é Professora Adjunta de Ciências Contábeis na UEFS e na UFBA