Dormi mais ou menos cedo de 31 de dezembro de 2020 para o primeiro de janeiro do ano de vinte, vinte e um, este de agora, e só fiquei acordado após a meia-noite para ver se alguém tinha alguma coisa a comemorar depois de um ano, digamos, sacana. Pela primeira vez na vida soube que a Barra, este bairro icônico de Salvador, Bahia, estava vazia, ela que nas noites do réveillon vira um recanto com rebanhos de todos os bairros, do país e de outros países. E, desde menino que nunca vi nem soube que a Boa Viagem, onde antigamente o povaréu passava a virada de ano estava entregue à solidão. Da minha varanda vi que na rua só passava aquelas motos carregando deliverys. Os edifícios escuros e a maioria dos apartamentos com luzes apagadas.
Mas não é que à meia-noite fogos espocar de fogos na Ilha de Itaparica, na região de Candeias, Madre de Deus e em Morro de São Paulo – vez que aqui a vista me privilegia – mostravam que havia gente feliz, realizada, satisfeita com o ano que passava. A seguir avaliei, se não estariam homenageando os quase 200 mil mortos pela pandemia no Brasil. Entretanto, preferi acreditar que se tratava de uma saudação, uma bajulação ao ano novo que estava chegando. Só podia ser.
Dormi, depois de me reconfortar com a última ilação e acordei mais cedo do que o de costume. Antes de abrir definitivamente os olhos roguei aos céus para que o que vivemos em 2020 não tivesse passado de um pesadelo e que quando eu levantasse e olhasse os jornais só haveria boa notícia, a exemplo de Lula ter devolvido o que pegou e Bolsonaro ainda no baixo clero da Câmara dos Deputados. Que Ciro Gomes estava com rouquidão e falava pouco e que Bahia e Vitória eram líderes nas suas competições, e não as bostas que apareciam em meu “pesadelo”.
Acordei e a primeira coisa – errada – que fiz foi olhar um grupo de amigos no Zap e vi que ainda estavam brigando os de esquerda com os de direita, pessoas que tempos antanho saíam juntos para os bregas de Salvador, iam à pesca na loca da sereia no Mont Serrat, bebiam até vomitar no Bar Brasil na rua da Imperatriz e frequentavam a Visgueira do Bira, na Ribeira. Todos frequentavam a casa dos outros, mas agora eram mais inimigos que Estados Unidos e Rússia durante a Guerra Fria dos anos 1960. Nem escovei os dentes e fui me preparar e ver a procissão marítima do Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes, coisa que se realiza há quase 200 anos e que somente teve problemas quando a Marinha se recusou a participar e emprestar uma galé no fim do século XIX, ou com problemas vistos em 1972 quando a galeota Gratidão do Povo emborcou depois de atingida por um foguete, e a imagem quase vira pesqueiro de bodiões, vermelhos e jaguaraçás, o que seria uma afronta ao Senhor.
Não que eu tenha religião, embora ache todas bonitas e úteis e até invejo quem tem fé. Mas, é que quando menino, morador da Vila Operária de Luiz Tarquínio, me envolvo com a emoção das pessoas, a belezura que é a saída e a chegada do Bom Jesus. Daí que fiquei olhando a Baía de Todos os Santos, vendo que o ano chegara com um céu do jeito que eu gosto – o que é bom augúrio vocês podem acreditar – cheio de carneirinhos. E nada do santo passar… nem uma lancha… nem uma escuna… um veleiro.. nem o veleiro do meu compadre o argonauta e jornalista Valmir Palma – que foi dos primeiros a pegar Covid na Bahia, mas não tem medo e sai velejando como um Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso. Lembrei então que fora anunciado pelo jornalista, radialista, articulista, homiliador (perdoe o neologismo para quem escreve homilias) e diácono Joselito Conceição Bispo – veja que já trouxe no sobrenome a vocação anunciada – que este ano a Galeota não iria ao mar que o Bom Jesus dos Navegantes ia ficar quieto no seu canto.
Fiquei na varanda matutando como é poderoso o tal do Covid-19 que escorraçou o Bom Jesus e olhando ao léu, quando olho para o fim da ladeira e quem vem subindo num carro do brioso Corpo de Bombeiros? Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes. Então pensei alto: tome seu Covid sacana, filho de uma que ronca e fuça. Pensava que ia vencer o Senhor dos Navegantes. Se ele não vem por mar, vem por terra pois todo marinheiro pisa também em chão. E se precisar vem pelo ar, pois ele é de todos os navegantes e navegar também por avião. São muitos os caminhos que um santo ou deuses podem traçar. E quando o caminhão passou com a imagem as duas únicas senhorinhas que estavam na rua bateram palmas.
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