A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em San José da Costa Rica, divulgou sua nona condenação do Brasil. Na sentença proferida em 15 de julho de 2020, no caso Empregados da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil, a Corte Interamericana tratou da explosão de uma fábrica de produtos pirotécnicos que resultou na morte de 60 pessoas, sendo 22 crianças, e lesões em 6 vítimas sobreviventes.
O fato ocorreu em Santo Antônio de Jesus, uma cidade do Recôncavo baiano, em 11 de dezembro de 1998. Na época, eu era membro do Ministério Publico baiano, lotado em Feira de Santana, a 85 km dali. Na região, era comum a fabricação e a comercialização de fogos de artifício em condições absolutamente inadequadas.
Infelizmente, em Santo Antônio de Jesus deu-se essa terrível tragédia, corretamente tratada como crime pela Polícia Civil e pelo Ministério Público da Bahia.
Mais de duas décadas depois, ao julgar o caso, a Corte IDH lidou com os direitos das vítimas à vida, à integridade pessoal, à proteção integral de crianças e adolescentes, assim como com o direito a adequadas condições de trabalho (meio ambiente do trabalho) e a proibição do trabalho infantil.
Além de determinar o prosseguimento da apuração das violações diretamente causadas pelos proprietários da fábrica de fogos, a Corte reputou haver responsabilidade internacional do Brasil por omissão da fiscalização das condições de funcionamento da fábrica, por violação das garantias de acesso à justiça e por falta de diligência devida em prazo razoável, em relação a processos penais, trabalhistas e cíveis relacionados à explosão.
É a primeira vez que a Corte aplica sua nova orientação sobre à justificabilidade dos direitos sociais. Em 2017, no caso Lagos Del Campo vs. Peru já se pronunciou que o art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos poderia ser aplicado autonomamente, o que permitia contornar restrições postas pelo art. 19.6 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, concluído em 1988, em São Salvador (Decreto 3.321/1999).
Diz o art. 26 da CADH:
Artigo 26. Desenvolvimento Progressivo. Os Estados-Partes comprometem-se a adotar providência, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
No caso Empregados da Fábrica de Fogos, mais uma vez, a Corte assinalou uma série de direitos das vítimas no sistema regional. Transcrevo trechos relevantes da sentença interamericana contra o Brasil:
216. Este Tribunal ha reiterado que las garantías judiciales comprendidas en el artículo 8.1 de la Convención están íntimamente vinculadas al debido proceso legal, el cual “abarca las condiciones que deben cumplirse para asegurar la adecuada defensa de aquellos cuyos derechos u obligaciones están bajo consideración judicial” . El artículo 25 de la Convención, a su vez, se refiere a “la obligación de los Estados Partes de garantizar, a todas las personas bajo su jurisdicción, un recurso judicial sencillo, rápido y efectivo ante juez o tribunal competente”.
217. Los artículos 8, 25 y 1.1 se encuentran interrelacionados en la medida que “[l]os […] recursos judiciales efectivos […] deben ser sustanciados de conformidad con las reglas del debido proceso legal, […] dentro de la obligación general a cargo de los […] Estados, de garantizar el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos por la Convención a toda persona que se encuentre bajo su jurisdicción (art. 1)”. La efectividad de los recursos debe evaluarse en el caso particular teniendo en cuenta si “existieron vías internas que garantizaran un verdadero acceso a la justicia para reclamar la reparación de la violación”. El acceso a la justicia puede ser verificado cuando el Estado garantiza, en un tiempo razonable, el derecho de las presuntas víctimas o sus familiares a que se lleven a cabo todas las medidas necesarias para conocer la verdad de lo sucedido y, en su caso, sancionar a los eventuales responsables.
218. En este sentido, la Corte recuerda que los artículos 8 y 25 de la Convención también consagran el derecho de obtener respuesta a las demandas y solicitudes planteadas a las autoridades judiciales, ya que la eficacia del recurso implica una obligación positiva de proporcionar una respuesta en un plazo razonable. (…)
220. La Corte ha indicado, haciendo referencia a la debida diligencia en procesos penales, que la investigación debe ser realizada por todos los medios legales disponibles y orientada a la determinación de la verdad y la persecución, captura, enjuiciamiento y eventual castigo de todos los responsables intelectuales y materiales de los hechos. Igualmente, que la impunidad debe ser erradicada mediante la determinación de las responsabilidades tanto generales del Estado, como individuales -penales y de otra índole- de sus agentes o de particulares, de modo que para cumplir esta obligación, el Estado debe remover todos los obstáculos, de facto y de jure, que mantengan la impunidad.
221. Como resulta de los hechos probados en el presente caso, la explosión de la fábrica de fuegos artificiales en Santo Antônio de Jesus, sucedida el 11 de diciembre de 1998, generó la apertura de procesos en las instancias administrativa, penal, civil, y laboral. La Corte entiende que la debida diligencia estará demostrada en el proceso penal si el Estado logra demostrar que ha emprendido todos los esfuerzos, en un tiempo razonable, para permitir la determinación de la verdad, la identificación y sanción de todos los responsables, sean particulares o funcionarios del Estado. En cuanto a los procesos civiles por daños, la debida diligencia se verifica por medio del análisis de las actuaciones de las autoridades estatales (jueces y miembros de la Fiscalía) en el sentido de conducir los procedimientos de forma sencilla y célere con el fin de identificar los agentes que causaron los daños y, en su caso, reparar adecuadamente a las víctimas. El examen de la debida diligencia en los procesos laborales debe tomar en consideración las medidas adoptadas por las autoridades judiciales para establecer el vínculo laboral entre los trabajadores y trabajadoras de la fábrica de fuegos con los dueños, identificar los montos debidos y determinar y ejecutar el pago de dichos valores.
Como se vê, a Corte ressaltou o direito à proteção judicial, o direito à diligência devida e o direito à razoável duração do processo também para as vítimas. Estas têm direito de conhecer a verdade e de obter respostas efetivas das autoridades da Justiça criminal, “já que a eficácia da medida processual para a proteção judicial implica uma obrigação positiva de proporcionar uma resposta em um prazo razoável.“
Do mesmo modo, a Corte assentou que “a impunidade deve ser erradicada mediante a determinação das responsabilidades tanto gerais do Estado, como individuais — penais e de outra índole – de seus agentes ou de particulares, de modo que para cumprir esta obrigação o Estado deve remover todos os obstáculos, de fato e de direito, que propiciem a impunidade”.
Na sentença, tratando das vítimas da explosão, a Corte IDH ressaltou que “a demora excessiva e a impunidade agravaram sua situação, especialmente em razão da condição de extrema vulnerabilidade pela situação de pobreza e discriminação estrutural em que se encontravam.” (§229 da sentença).
Para a Corte, a “falta de devida diligência se identifica especialmente nos atrasos injustificados das autoridades judiciais em processar os diversos recursos interpostos pelos acusados, nos problemas com as movimentações equivocadas dos autos e nos erros quanto à intimação da decisão de segunda instância aos defensores dos acusados, o que levou à anulação daquela sentença”. (§230).
Por fim, neste ponto, a Corte IDH afirmou que o Estado brasileiro não deu uma justificativa aceitável para os longos períodos de tempo nos quais não houve movimentação processual por parte das autoridades judiciais e para a “demora prolongada do processo penal”. Tendo isso em conta, a Corte IDH afirmou que “a demora de quase 22 anos sem uma decisão definitiva configurou falta de razoabilidade no prazo por parte do Estado para levar a termo o processo penal”, revelando a falta de diligência das autoridades judiciais baianas quanto ao encerramento da persecução penal. (§231).
A falta de diligência devida e a mora processual também foram reconhecidas pela Corte nos processos civis e trabalhistas, o que levou o tribunal a asseverar que o Brasil “é responsável pela violação do direito à proteção judicial, previsto no art. 25 da Convenção Americana”, assim como pela violação à garantia judicial da razoável duração do processo, prevista no art. 8.1 da Convenção, em prejuízo de seis vítimas sobreviventes e de cem familiares das vítimas falecidas. (§247).
Por isso, a Corte IDH ressaltou que “as vítimas ou seus familiares têm direito a que se faça todo o necessário para conhecer-se a verdade do ocorrido e a que se investigue, julgue e, se for o caso, puna os eventuais responsáveis”. (§266).
Noutro ponto importante, tendo em conta a temática de empresas e direitos humanos, a Corte IDH estimou pertinente determinar ao Brasil que “no prazo de um ano apresente um informe sobre a implementação e aplicação das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, especialmente no que tange à promoção e o apoio a medidas de inclusão e não discriminação mediante a criação de programas de incentivos para a contratação de grupos vulneráveis; a implementação por parte das empresas de atividades educativas em direitos humanos, com a difusão da legislação nacional e os parâmetros internacionais e um enfoque nas normas relevantes para a prática das pessoas e os riscos para os direitos humanos”. (§291).
Imagino que será muito complexa a fase de cumprimento dessa sentença. Ao menos, a decisão já serve como início de reparação para as dezenas de vítimas e como mais uma lição para o Estado brasileiro e para que negam os direitos delas.
Vladimir Aras é Procurador Regional da República em Brasília (MPF), coordenador do Grupo de Apoio ao Tribunal do Júri Federal (GATJ) da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Texto extraído do Blog do Vlad
fotos: jornal A Tarde/Blog do Vlad