Estava de volta à cidade. Recém-formada em jornalismo pela UFBA, fazia o percurso de volta à terra natal. Vivíamos a década de 1970.
Na sucursal do Jornal da Bahia tinha a responsabilidade de colocar em prática a teoria que aprendera durante os quatro anos de faculdade.
Era a primeira mulher em Feira de Santana a fazer incursões no jornalismo profissional, com atuação inclusive, na cobertura policial, até então restrita aos homens.
Hoje é tão comum ter mulheres na redação fazendo polícia! Elas estão aí, em todas as áreas, atuando com seriedade e competência. Mas, naquele tempo, em uma cidade ainda provinciana, era uma verdadeira audácia!
O desafio era grande para uma jovem profissional. Num universo predominantemente masculino, tinha que fazer respeitar o trabalho desenvolvido em igualdade de condições.
No começo foi difícil. Mas, aos poucos, os colegas e as próprias fontes de notícias foram se acostumando a lidar com uma mulher na atividade diária do jornalismo. O preconceito foi vencido a duras penas e muito serviço.
Mas se enfrentava preconceito também sabia aproveitar das vantagens de ser mulher. Quantas matérias importantes foram conseguidas, mesmo com alguma resistência do entrevistado, usando bom senso, aliado à sensibilidade e à intuição, enfim, ao sexto sentido feminino. Nada de anotações! Muitas vezes bastava uma boa conversa e estabelecia-se a confiança.
Concorrência saudável – Já naquela época fazia-se em Feira de Santana um bom jornalismo, noticioso e investigativo também. Os dias eram intensos. Vivíamos um tempo de grande efervescência em nosso meio. Sucursais de importantes jornais baianos instalados na cidade, a exemplo do jornal A Tarde, Jornal da Bahia e Diário de Notícias, os dois último já extintos há alguns anos, davam o tom e estimulavam uma saudável concorrência com a mídia local.
Além disso, sucursais de jornais do Sul do país, como o Jornal do Brasil, O Globo e o Estado de São Paulo, sediadas em Salvador, também absorviam mão de obra local. Trabalhávamos como freelancer sempre que um acontecimento político exigisse maior atenção- como os grandes comícios que animavam as campanhas eleitorais-, e a crônica policial merecesse estar em destaque em nível nacional. Política e polícia, como ainda hoje, desafiando o jornalista e atraindo o interesse do público leitor.
A imprensa feirense pode se orgulhar de ter feito bons trabalhos, de ter contribuído para servir à sociedade como é sua missão. Lembro de um crime de grande repercussão e com desdobramentos imprevisíveis, que culminou com a destituição de toda a polícia local. Delegados e escrivães além de outros funcionários que ocupavam cargos por influência política, sem nenhuma formação nem preparo tiveram que arrumar as malas e partir. Vieram então os delegados de carreira. Recordo claramente que a imprensa teve participação decisiva nesse episódio.
Eram tempos difíceis. Nem por isso éramos menos felizes. Não havia internet nem outras facilidades impensáveis então. Aqueles – como eu-, que atuavam nas sucursais, transmitiam as matérias por meio do único telex instalado na sede dos Correios. Era comum, no final da tarde, os repórteres se reunirem para enviar o trabalho do dia. A disputa era acirrada para enviar a matéria.
Apesar de todo o coleguismo era preciso sigilo. Cada um guardando com todo cuidado a informação preciosa, mesmo porque ainda prevalecia o velho “furo” de reportagem. Afinal, todo o esforço dispensado desde a coleta de informações até a produção do texto não podia ser em vão.
Não raras vezes aconteciam imprevistos. Depois de todo um dia de trabalho éramos surpreendidos com uma má notícia. O velho telex havia enguiçado! No Jornal, o espaço aberto esperava a matéria. Não podíamos falhar e o único recurso naquela situação era transmitir todo o texto pelo fio. Isso mesmo, pelo telefone e da nossa casa. No dia seguinte haja matéria truncada, texto sem nexo e outros equívocos que nem é bom lembrar.
Enviar fotos, então, demandava sacrifício maior. O próprio repórter fotográfico se encarregava de levar o filme até a matriz do jornal para revelar. Seguia de ônibus até Salvador, retornando em seguida para começar tudo de novo no dia seguinte. Hoje, com as facilidades do jornalismo em rede digital, fica difícil imaginar tanto desgaste para colocar uma foto no jornal. Mas era assim mesmo que as coisas funcionavam.
Saudosismo? Nem um pouco. Sou uma mulher do meu tempo. E estou sempre procurando acompanhar de perto as mudanças e me beneficiar com o progresso que a tecnologia nos traz. Mas é bom recordar um tempo que se foi, sobretudo quando temos lembranças interessantes a nos acompanhar.
Agora, longe de ser a única jornalista da cidade, e são tantas e tão boas profissionais, procuro aprender com os mais jovens. Com eles aprendo, inclusive, que comemorar por um bom trabalho realizado não é privilégio de alguns, não depende da idade nem da profissão.
Sou uma romântica do jornalismo devo confessar. Ainda sou capaz de vibrar, com o mesmo entusiasmo da juventude, ao produzir e ver publicada uma boa matéria. Amo o que faço e essa, com certeza, é a receita de um casamento feliz com a profissão escolhida e ainda hoje exercida.
foto: Feira de Santana na década de 70
Publicado originalmente em 2 de setembro de 2019
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