Existe um cacoete evidente em toda a obra de Uyatã Rayra, mesmo que, às vezes, não consigamos identificar exatamente qual. Esse jogo simbólico – essa gastação, essa tiração de onda – do qual ele lança mão nos coloca sempre diante de algumas questões mais ou menos evidentes. A perseguição que ele faz do tema “Feira de Santana” é uma ação que performatiza uma própria ideia de cidade: quanto mais perto estamos de Feira de Santana, mais parece que ela se afasta, parecendo ser possível encontrá-la e criar sentidos possíveis para ela apenas em trânsito. Mas, talvez, seja assim com tudo. De algum modo, a familiaridade nos faz pessoas estrangeiras, o movimento é preciso para nos colocarmos mesmo como estrangeiras diante do que nos parecia familiar – e a criação e experimentação de linguagens artísticas é uma forma de trânsito.
Essa é uma das questões colocadas no Cordel da Caixa D´Água: o alienígena é o estrangeiro ou somos nós? Essa troca de sentidos faz parte dos jogos que Uyatã propõe, pois nós, as pessoas “difeirenseadas”, somos, de algum modo, as alienígenas, isto é, aquelas que provocam estranhamento e alguma ilegibilidade, pois viemos de um outro
lugar que não aquele. E esse sentimento de ser de um outro lugar que não é aquele é ainda mais presente em populações não-urbanas, não-brancas, não-heterossexuais, não-cisgêneras.
Ser “difeirenseada”, por isso, no Cordel e fora dele, é o efeito, é o processo pelo qual pessoas que vieram do espaço se tornaram familiarizadas e próximas à Feira de Santana, se tornaram de Feira de Santana. O jogo que ele produz, portanto, é um modo de lidar com essa inadequação. Será que estamos mais próximas dos vaqueiros do que dos astronautas? Talvez, o vaqueiro seja esse astronauta. Talvez haja um “devir difeirenseado” no mundo.
A criação de intimidade no cordel se dá, também e no entanto, pelo urbano, pelo passeio que esse alienígena simpático e enigmático (que, entretanto, vem de um lugar onde as disposições sexuais e de gênero parecem com as nossas – já que a história começa com uma namorada no lugar estereotipado de uma mulher controladora e que deseja estabelecer uma relação de controle com seu ET amado) dá pela cidade, jogando com essa dimensão contraditória – mais uma – de Feira: o lugar que, ao mesmo tempo, tem tudo, mas não tem nada. Feira nos trepida, nos oscila.
Essa conversa de Uyatã se dá com várias dimensões interpretativas que habitam o Cordel da Caixa D´água e poderíamos investir em cada uma delas, se tivéssemos como agora: a) Muniz Sodré com “o bicho que chegou a Feira”; b) Sun Rá e a sua proposição sobre a não pertença terráquea das pessoas negras: nós, pessoas negras, seríamos alienígenas e teríamos vindo do futuro, somos afrofuturistas por silogismo; c) o surrealismo de Magritte, quando Uyatã nos diz, em sua introdução, que isto não é um cordel – e a gente pode dizer então: Feira de Santana não é uma cidade, isto não é uma cidade; d) Bacurau e essa cidade que parece não estar no mapa, mas é pista de pouso pra quem vem do espaço;
E como a separação entre forma e conteúdo também é falsa, as ilustrações assinadas por Siddharta Gautama também elaboram um diálogo com essas aparições feirenses que botam os tempos e os lugares para dialogar – Feira tem seu próprio Siddharta. E as invenções seguem: quem pingou a primeira gota? Quem inventou Uyatã Rayra? O que esse disco voador que vira Caixa D´água nesse quilombo do Tomba quer nos dizer?
E, f, g, h, i, j… “Lá no meu sertão pros caboclo lê/ Têm que aprender um outro
ABC” (GONZAGA).