Há umas semanas recebi um áudio de Maryzelia me agradecendo sobre algo que escrevi pra ela no jornal. Dizia que não tinha tido tempo de ler ainda, mas já de antemão, agradecia. Eu, que nada escrevi, gargalhei com ela no whatsapp sobre o equívoco e logo descobrimos que era um texto antigo trazido à baila por Jânio Rêgo pela ocasião do seu retorno aos palcos na província de Santa Ana. Prometi aparecer no show completamente sem certeza de que cumpriria. Fui! E que bom que fui!
Cheguei antes de começar e pude ouvir que a primeira música era de Caetano. Fiquei pensando, pensando… No samba, em Maryzélia, em quanto tempo fiquei sem vê-la cantar e em todas as vezes que vi. Inclusive numa incrível noite há uma década, pelo menos, na praça do Fórum onde no pé do palco um homem aos berros repetia durante quase todo o espetáculo: Maryzélia, ôôô Maryzélia, eu sou seu fã, você é a Carmen Miranda da Bahia! Ao final do show, fui apresentar o tiete à nêga e quando ela lhe perguntou o nome ele largou um sonoro: Moitha! Ela, com toda irreverência, disse: – Muito prazer, Seu Moitha, eu sou Maryzélia. Terminamos a noite às gargalhadas!
Estou lendo “Carmen: uma biografia” escrita pelo excepcional Ruy Castro que nos conta a história dos biografados como se estivéssemos num filme. Me senti envergonhado por gostar tanto de música e saber tão superficialmente sobre Carmen, a primeira mulher contratada do rádio no Brasil, a primeira brasileira (ai de quem dissesse que não) a fazer sucesso em Hollywood, a primeira sul-americana a ter seu nome na calçada da fama nos Statestates, a primeira a cantar pra o presidente dos EUA na Casa Branca e mais tantos pioneirismos grandiosos que eu poderia ficar aqui elencando até me perder. Realizou grandes feitos seguida pelo Bando da Lua, grupo que não deixava o samba morrer e que Carmen brigou e fez questão de manter perto por muito tempo, a contragosto dos contratantes norte-americanos.
No verão de 2019 num desses eventos acalorados da Bahia, na Casa Ninja, Maryzélia ao se apresentar convidada de Teresa Cristina puxou Caetano pra o palco e lhe colocou pra sambar. Aconteceu numa terça-feira. Na sexta seguinte estive num almoço familiar com o filho de D. Canô e resolvi lhe comentar sobre Maryzélia, falando com entusiasmo que era minha amiga e era de Feira. Lembrei que durante a turnê Zii e Zie, Caetano escrevia um blog chamado Obra em Progresso e relatou nele suas impressões sobre Feira de Santana “no nó do recôncavo com um grande contingente de pessoas avisadas e civis” e que quando ele era criança as pessoas de Santo Amaro olhavam pra Feira “como um poeta olha para um brutamontes”. Porém logo que comecei a falar de Maryzélia ele me disse que se lembrava dela “das festas que Paulinha dá lá em casa”, que ela “cantava bem, sambava bem e se apresentava bem no palco”. Nenhuma novidade pra mim, contudo feliz que Caetano estivesse atento ao talento da sambista.
Na versão comemorativa de 20 anos do seu livro biográfico, Verdade Tropical, Caetano adicionou um capítulo chamado “Carmen Miranda não sabia sambar”. Lembrei de Moitha (que eu julgava ser mais doido do que só irreverente) e comentando com o radialista e ativista cultural Elsimar Pondé, descobri que Seu Moitha é compositor e vivia nos programas de rádio da Feira pedindo pra ter seu talento difundido. Se algum leitor tiver notícias dessa personalidade, pode dar notícias a Jânio, diretor desse blog e apaixonado por figuras excêntricas.
Pra finalizar, queria dizer que as sextas no TOMA (com esse nome super sugestivo) Maryzélia se apresenta, faz seu canto ecoar, colocou Batatinha no repertório, chama a gente pra subir no palco, nos irradia com uma energia que nos deixa soltos, quentes, com malícia, com destreza. Ela nos diz “samba, ordinário” e a gente se joga como se o nervo ciático nem fosse doer no outro dia. Por isso, quando pensei “com quem roupa eu vou pra o samba que ela me convidou” vesti uma camisa que ganhei de Vítor Vega, ator feirense e que como nossa sambista foi morar no Rio de Janeiro levando o nome de Feira. Na estampa do presente tem escrito: Eu nunca disse que prestava! É esse o clima, de descontração, de boas risadas, de irreverência, porque o que vale é se jogar na roda e aproveitar todo talento e força que nossa sambista-mor tem pra oferecer. Além de tudo essa sabe sambar. E muito!
Caíque Marques é jornalista e produtor cultural