Os fregueses chegam, indagam sobre os sabores dos bolos na vitrine, recebem informações e, após alguns instantes, mãos ágeis retiram o produto escolhido, embalam e entregam à clientela, que estende uma nota ou o cartão bancário. A transação é arrematada com um sorriso curto, de canto de lábio. Empreendedora: a senhora – aparenta pouco mais de 50 anos – atende numa loja acanhada nas cercanias do centro feirense. Numa parede alva, de pintura manchada, refulgia a Bandeira Brasileira:
– Eu sabia que a senhora é patriota!
O sorriso curto expande-se, exibindo dentes escuros, manchados.
– Sim! Temos que acreditar no País!
O interlocutor nem pestanejou: impediu-a de tomar fôlego, concordou com veemência:
– Exato! Está aí o “centrão” avacalhando tudo, a corrupção comendo solta, altos esquemas vindo à tona, mas temos que acreditar! Pior que nem nos militares podemos confiar mais! A senhora viu o noticiário recente? Picanha, filé, bacalhau, cerveja chique, remédio para a calvície, até Viagra e prótese peniana!
Aí a mulher fez um muxoxo – longo, torcido, doloroso – e um gesto lento, penoso. A mão espalmada parecia suplicar uma trégua ou emitir uma ordem débil para o interlocutor conter-se, engolir as palavras. Lançou chispas de ódio – os olhos cintilaram, eletrificados – e reagiu com sua profissão de fé anticomunista: cristã, devotada à família e ao trabalho, penalizada pelos impostos escorchantes, pela liberalização dos costumes, pela desfaçatez dos comunistas, que rondam, ameaçadores.
– A senhora está certa! Os impostos são indecentes, escorchantes! Para onde vai o dinheiro do brasileiro? Para a farra verde-oliva, para remediar calvície, bancar cervejas, o Viagra! Inadmissível!
Aí a empreendedora se desconcertou. Cerrou os punhos, socou com leveza o balcão. O interlocutor quase fez uma piada sobre a higidez verde-oliva com o Viagra, mas não soaria bem, nem seria elegante. Aquela mulher sofria por sua inarredável coerência: cristã, conservadora, defensora da família tradicional, avessa às novidades que globalistas e comunistas – discordando dela, qualquer um é comunista – tentam disseminar na sociedade. E defensora intransigente do governo de Jair Bolsonaro, o “mito”.
Sem trégua, o interlocutor aproveitou para lembrar que o brasileiro que labuta e paga imposto – a manicure, o entregador de comida, a diarista, o camelô – é quem banca as farras do “centrão”, dos pastores lobistas, dos militares que refestelam-se em regalias. Por fim, arrematou, com um sorriso de escárnio:
– A senhora aqui empreendendo, coitada, lutando para pagar menos imposto e veja o que fazem com o seu dinheiro…
Àquela altura a senhora, com um pano, removia inexistentes farelos sobre o balcão. Lá fora a tarde agonizava, tingindo o céu de um azul puríssimo. Mas o azul expirava, empalidecendo, antes de escurecer. Na calçada, os transeuntes misturavam-se às sombras do crepúsculo. Impaciente, a mulher resolveu despachar a clientela indesejada:
– Mais alguma coisa?
Na manhã seguinte, o Pavilhão Nacional desaparecera da parede manchada. Mãos, provavelmente prudentes, o removeram: melhor evitar comentários irônicos, deboche, chacotas dos comunistas, que espreitam por aí. Mas que o olhar melancólico denunciava uma ponta de decepção com o “mito”, – ah! – isso denunciava!
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