A música é terapia e alguém já disse que, dependendo da sintonia e vibração, é uma espécie de oração que toca em sentimentos profundos, remexe coisas há muito adormecidas. E aos dotados de ouvidos sensíveis e aos românticos em geral, o canto, o solfejo, a harmonia e as notas musicais produzem emoções capazes de inundar uma sala de lágrimas ou promover uma festa. Hoje, numa manhã fria e de pouco sol, enquanto minha solidão contemplava pela janela o silêncio do parque, que me negava a costumeira algaravia dos pássaros, provavelmente recolhidos aos seus ninhos, quem iluminou essa manhã foi um texto musical de um velho escritor eslavo, Sándor Márai, ao revelar o poder exercido pela música tocada ao piano num castelo de uma velha aristocracia decadente:
…” Numa noite de verão, enquanto Konrad e a mãe de Henrik estavam tocando a quatro mãos uma peça para piano, algo aconteceu… A condessa tocava com enlevo: executavam a “Fantaisie polonaise”de Chopin. Na sala tudo parecia vibrar. Enquanto aguardavam, educados e pacientes, em suas poltronas num canto do salão, pai e filho perceberam que naqueles dois corpos, da mãe e de Konrad, estava se passando algo estranho. Da música parecia se desprender uma força mágica capaz de levantar os móveis e inflar as pesadas cortinas de seda das janelas. Era como se todas as coisas velhas e mofadas, enterradas há tempos nos corações humanos, recomeçassem a viver, como se no coração de cada criatura se aninhasse um ritmo mortal que, em dado momento da vida, poderia começar a pulsar com violência implacável. Os pacientes ouvintes compreenderam que a música representava um perigo. Mas a mãe e Konrad, sentados ao piano, já não ligavam para esse perigo. A “Fantaisie polonaise” era só um pretexto para a explosão de forças que se agitam e fazem eclodir tudo o que costuma ser cuidadosamente camuflado pela ordem estabelecida. Sentavam-se rígidos diante do piano, com o corpo ereto vagamente inclinado para trás, como se a música tivesse lançado no espaço um coche alado mítico, puxado por fogosos corcéis invisíveis, e como se fossem eles que segurassem com mão firme, nessa corrida impetuosa, as rédeas das forças que se soltavam. Então, pararam em uníssono, com um único acorde. Um raio de sol do crepúsculo entrou pela janela e no facho de luz volteou uma poeira dourada que, ao seguir os cavalos alados guiando o coche mágico já distante da música, subia pela estrada celeste que leva à destruição e ao nada…”
Jailton Batista é jornalista e escritor. Em Feira de Santana foi Secretário de Cultura