“Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo/Vendo fazer tudo que se faz dentro de um banheiro”. (Paranoia, de Raul Seixas)
Pouco mais de um século depois do pintor e escultor francês Marcel Duchamp sacudir a sociedade da época e colocar em xeque o conceito da palavra arte ao apresentar um urinol como manifestação artística, o prosaico vaso encontrado na maioria dos banheiros masculinos volta a ser colocado no centro de uma polêmica entre conservadores e renovadores. No caso, entre bolsonaristas e defensores da neutralidade de gênero.
A provocação de Duchamp foi em 1917, quando ele encaminhou a obra “A Fonte” – na verdade, um urinol comum, branco, desses encontrados em qualquer loja de material de construção – a um concurso de arte nos Estados Unidos, assinando com o pseudônimo “R. Mutt”. O júri, é claro, rejeitou a peça por não ver ali nenhum valor artístico, mas acabou voltando atrás, ao saber que o autor era Duchamp.
Pioneiro da arte conceitual, criador do conceito de “ready-made” (que propõe a apropriação de objetos do cotidiano, dando-lhes novas significações), Duchamp entrou para a história da arte deixando um legado que influenciou alguns movimentos vanguardistas da primeira metade do século passado.
A nova polêmica do urinol estabeleceu-se na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), 107 anos depois, no bojo de uma reforma da infraestrutura do campus, com a retirada dos mictórios dos banheiros masculinos, pretensamente para atender a reclamações de alguns usuários que se sentiam incomodados ao usar e ao ver outros usando o equipamento higiênico.
Acontece que os urinóis retirados dos banheiros foram descartados em uma área do campus em meio ao mato. Foi o bastante para a psicóloga Rocheane Rocha, pré-candidata a vereadora pelo PL e militante do Movimento Pátria Amada, de viés bolsonarista, acusar a administração da universidade de mau uso do dinheiro público, já que, segundo ela, não havia motivo para a substituição dos mictórios por vasos sanitários.
“Eu nunca vi isso, banheiro masculino sem mictório”, bradou a militante bolsonarista em um vídeo postado na internet. “E quem quer usar o mictório, com é que fica agora?”, questionou, acrescentando que vai levar a questão ao Ministério Público.
Em nota, a Uefs explicou que a retirada dos mictórios reforça as políticas de inclusão da instituição, promovendo a neutralidade de gênero no ambiente acadêmico, e visa proporcionar um ambiente mais confortável e digno para todos.
A polêmica ganhou as redes sociais e adquiriu contornos políticos com bolsonaristas e não-bolsonaristas atacando e defendendo os urinóis em comentários às vezes jocosos, mas também, como virou praxe, trocando amabilidades inteiramente fora do tom que se espera das discussões acadêmicas.
A própria reitora Amali Mussi, em uma tentativa de encerrar a polêmica, anunciou que alguns banheiros masculinos voltarão a ter mictórios, mas dentro de cabines individuais, para assegurar a privacidade do usuário e não constranger quem estiver por perto.
Alguns dos polemistas, porém, prometem continuar alertas. Para eles, a retirada dos mictórios dos banheiros masculinos nada tem a ver com a maior ou menor privacidade no uso do equipamento. Trata-se, segundo eles, de um ataque organizado dentro da Uefs a um dos últimos bastiões do machismo: o direito de fazer xixi em pé.
José Carlos Teixeira – É jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador