Para quem pensa que crônicas são apenas textos ordinários, no sentido de relatarem acontecimentos da ordem do dia, como se isso já não fosse sinônimo de grandeza, esse livro de Rubem Alves prova o contrário. Nele, encontramos crônicas extraordinárias que se afeiçoam muito mais ao conceito de crônica daquela que “apaga a lua”, nossa escritora Alana Freitas. Ela, que não se desvencilha por nada de sua nata vocação para ensinar com maestria, nos fala, em sua bela reflexão acerca desse gênero literário, do adjetivo crônico, da sua ligação com o tempo cronológico, que por sua vez advém da mitologia em que o deus Cronos devora impiedosamente as criaturas.
Eu também já tomei a ousadia de falar um pouco da crueldade desse deus que a tudo submete a sua selvageria:
“Tempo, cavalo selvagem,
Que ignora a forte brida
Quebra as sinuosas curvas
Do percurso da corrida
Range os dentes, corta a espora
Salta e joga a sela fora
E larga um coice na vida“.
Essa metáfora do cavalo selvagem harmoniza-se com a natureza indomável do tempo que Alana nos lembra, da persistência, da manifestação irremediável do tempo, em seus também crônicos ciclos, em sua vocação bumeranguista, arremessando-nos para sua jornada e fazendo-nos retornar sempre.
Nesse sentido, retornar é imperativo, cabendo a nós, seres ordinários, a possibilidade de interferir na forma como podemos retornar: Com a suavidade de quem soube fazer bem seu percurso, ou com a violência de um aventureiro rebelde. Penso que Rubem Alves ficou com a primeira opção, o “terno” do título desse livro reforça esse pensamento. Este poeta da prosa retornou às leituras mais substanciais que fez ao longo da vida, (livros, filmes, acontecimentos, sonhos, reflexões…) fazendo elas ecoarem em nossa trajetória de um jeito novo, belo, dando mais impulso ao nosso “projétil humano” em trajeto de ida ou de volta, produzindo um efeito de qualidade a um instante nosso, um toque de ternura na dureza da nossa condição crônica, ou seja, fadada a um fim.
Senti, que embora ainda estivesse distante mais de uma década de seu retorno definitivo, Rubem Alves falava essencialmente dele, neste livro, cuja sexta edição é 1995; dos equívocos da vida, das angústias humanas e seus paliativos. Das forças antagônicas do bem e do mal, de Deus e do diabo, e das coisas inegociavéis, simples e belas, as quais a pressa dos rebeldes não os permite vivê-las.
Sábio homem, terno retornante, Rubem Alves utiliza muitas imagens eróticas em suas crônicas, recorre a elas sem tabu algum, mas sem descambar para um tom pornográfico, mostrando-se demasiadamente humano, dotado de sexo e de libido, forças potenciais como a de todos os elementos da natureza. Com suas palavras, transa com a vida, goza com o mundo e reproduz a arte de nos fazer experimentar desse prazer extraordinário, em crônicas e jornadas tão ordinárias. Essa é uma leitura deliciosa, mas também inquietante, como tudo que é crônico.
Leia Rubem Alves! Leia imagens! Leia tua história de vida! Leia o mundo, teu coração…!!! Nós precisamos de leituras para também fazermos nossos retornos, e ternos.
Romildo Alves é escritor e poeta.