“Onde quer que esteja/O fole de oito baixo,/ Zabumbeiro, um terreiro, forrozeiro,Ôpa! Ói eu no meio”. (Aprendi com o Rei, de João Silva)
Bastariam uns dois ou três passos e a gente poderia tocar nele. Mas ninguém ousava. Todos mantinham a distância e o respeito. Vontade de chegar mais perto, quem sabe dar um abraço, todos tinham. Mas ninguém era capaz de tal audácia. Contentávamos-nos todos com aquela pouca proximidade e o encantamento de estar ali, juntinho ao rei, respirando o mesmo ar que ele, sentindo, embevecidos, o corpo inteiro acompanhar o ritmo da voz real.
Foram várias as vezes em que estive assim, tão perto de um rei. Quer dizer, na minha vida de repórter, pelo menos duas vezes, que eu me lembre, entrevistei Ferreirinha, o mais longevo e carismático Rei Momo do Carnaval de Salvador; e privei da amizade do saudoso Hilquias Carvalho, o mais alegre e animado Rei Momo da Micareta de Feira de Santana. Mas esses foram reis de realeza efêmera, pois seus reinados invariavelmente acabavam na quarta-feira.
Aquele, não. Aquele era um rei de verdade o ano todo. Seu Luiz, o Rei do Baião, que não perdia a majestade nem mesmo quando fazia de trono um metro de rua e nos encantava cantando e tocando sanfona no passeio da loja Casas Pernambucanas, em Feira de Santana.
Sempre aparecia nas segundas-feiras, dia maior daquela que foi uma das maiores feiras-livres do Nordeste e que na época ocupava uns 12 quilômetros de vias no Centro da cidade. A loja da Casas Pernambucanas ficava na Praça da Bandeira, esquina com a Rua Marechal Deodoro. Acompanhado apenas de um zabumbeiro e um tocador de triângulo, ele se postava bem no ângulo da esquina e fazia daquele pouco espaço o palco onde cantava, tocava sanfona, contava causos e gargalhava feliz.
No início da Marechal Deodoro, paralelas ao passeio da Casas Pernambucanas, ficavam as barracas dos vendedores de ouro: anéis, alianças, pulseiras, brincos, correntes, todo tipo de joias… Quase todos membros da colônia de pernambucanos que se estabeleceram na cidade, dando origem ao bairro Chácara São Cosme, sob o comando de líderes como o saudoso João Serafim de Lima, o João do Ouro, um pernambucano de Serra Talhada, que conquistou vários mandatos na Câmara de Vereadores de Feira com os votos de seus conterrâneos.
Quando Luiz Gonzaga começava a cantar no passeio da loja, armava-se um rebuliço enorme entre os vendedores de ouro, que não sabiam se atendiam a clientela que buscava um anel, uma aliança, ou se prestavam atenção naquele outro pernambucano nascido em Exu que com sua música conquistou o Brasil e o trono de Rei do Baião. E Luiz Gonzaga se sentia em casa, com aqueles súditos especiais.
Nenhum outro artista marcou minha infância e início da adolescência como Luiz Gonzaga. Ainda pequeno, em Feira, fui levado inúmeras vezes pelas mãos de minha mãe para vê-lo cantar e tocar sanfona, sempre em praça pública, como ele gostava de fazer, para quem quisesse ouvir. Trago feliz na memória algumas dessas vezes em que o vi abrir o matulão musical e desfiar um rosário de xotes, xaxados, baiões, tiranas, marchinhas e maracatus, do alto das marquises da antiga Loja Pires, na Praça da Bandeira, ou do extinto Abrigo Nordestino, no final da Avenida Senhor dos Passos.
Lá do alto, trajando o gibão de couro de vaqueiro enriquecido com adereços coloridos no mesmo material e usando um chapéu de couro com a aba dobrada para trás e cheia de ornamentos, como os cangaceiros, soltava a voz e abria o fole da enorme sanfona branca com botões de baixo pretos e arremates prateados. E tome xote, e tome baião, e tome xaxado…
Naquele tempo, na virada dos anos 50 para os 60, a voz inconfundível e o fraseado da sanfona de Luiz Gonzaga dominavam a trilha sonora de uma Feira de Santana ainda de características eminentemente rurais e profundamente marcada pela cultura sertaneja.
Não apenas no período dos festejos juninos, mas durante todo o ano, trios de sanfona, zabumba e triângulo marcavam obrigatória presença nos dominicais programas de auditório das rádios Cultura e Sociedade de Feira e o repertório do Rei do Baião se espalhava pelos bairros, ruas e casas, pelas ondas do rádio ou graças às gravações em discos de 78 rpm tocadas nas vitrolas domésticas.
Essas imagens me vêm à cabeça, vívidas e prazerosas, ao ouvir a voz de Luiz Gonzaga e músicas da autoria dele ou por ele gravadas e regravadas por outros artistas, eternamente presentes na trilha sonora dos festejos juninos nessa banda nordestina do Brasil – não obstante a força enorme que a ignorância, a mesquinharia e a pequenez dos interesses econômicos fazem para desvirtuar a cultura regional.
Este ano, o resultado desse embate na capital baiana, mensurado por meio das câmeras de reconhecimento facial da Secretaria da Segurança Pública, foi promissor: os festejos juninos oficiais no Parque de Exposições, com grandes shows e uma grade de atrações caras que contemplava a tal da modernosa diversificação musical, reuniu 41 mil pessoas no domingo, véspera do dia de São João, e 33 mil no dia seguinte. Já a festa no Pelourinho, com pequenos shows e atrações do chamado forró de raiz, atraiu pouco mais que o dobro de gente: 83 mil na noite de São João e 69 mil no dia seguinte. Nem tudo está perdido, portanto. Viva Luiz Gonzaga!
José Carlos Teixeira, jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador