“Vou contar uma história/Na verdade e imaginação/Abra bem os seus olhos/Pra enxergar com atenção/É coisa de Deus e Diabo/Lá nos confins do sertão”. (Abertura, de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha)
A figura solitária do cordelista Jurivaldo Alves da Silva caracterizado de cangaceiro e segurando uma espingarda velha, sentado na primeira fila de uma sala do Orient CinePlace Boulevard, em Feira de Santana, na sessão especial de lançamento do filme “Revoada”, do cineasta baiano José Umberto, na noite do último sábado, 17, um dia após o início oficial da campanha eleitoral, pode ser tomada como uma espécie de premonição de como será a disputa pela prefeitura da maior cidade do interior da Bahia: uma luta renhida.
É lá que será travado o maior embate entre governo e oposição nas eleições municipais de outubro, ambos de olho não só no direito de sentar-se na cadeira principal do paço municipal, mas também na conquista de um forte baluarte para a disputa de 2026 pelo governo estadual. Será peleja ardorosa, contenda feroz, duelo sem trégua, daí a simbologia a que recorro, evocando os combativos cangaceiros de Lampião, após o insight provocado pela foto do cordelista no lançamento do filme.
Fique tranquilo, meu preocupado leitor, não estou antevendo uma disputa sangrenta com cangaceiros de um lado metendo bala e as volantes respondendo no mesmo tom, do outro. Afinal, embora Feira de Santana carregue a fama de ser atualmente uma das cidades mais violentas do país, ninguém espera que lá a contenda eleitoral chegue a tais extremos – Valha-nos Santana! Uso o recurso para dar uma dimensão da dureza da disputa em andamento.
E é natural que seja uma lida renhida. Afinal, segundo maior colégio eleitoral da Bahia, com 426.887 eleitores registrados e grande influência sobre a vasta região que polariza, Feira de Santana é peça chave na disputa do governo estadual. Sempre teve um peso muito grande. Ganhou, porém, maior relevância na eleição deste ano após a provocação gerada por um enigma: por que o Partido dos Trabalhadores, no poder estadual há quase dezoito anos, não consegue conquistar a prefeitura das duas maiores cidades da Bahia?
“É algo que não se explica”, espantou-se o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em tom crítico e provocando as lideranças baianas presentes, na abertura da conferência eleitoral do PT, em dezembro do ano passado, em Brasília.
Na verdade, tem uma explicação, sim. Trata-se de um falso enigma. O PT não se sai bem por não conseguir apresentar candidato competitivo nas duas cidades. Na capital, sem renovação de quadros, insistiu quatro vezes com Nelson Pelegrino (1996, 2004, 2012 e 2016). Na eleição passada, em uma inútil e tola armação, filiou de última hora a major PM Denice Santiago para torná-la candidata. Este ano, desistiu e está apoiando o emedebista Geraldo Júnior, um egresso do arraial oposicionista, ligeiramente vinculado à matriz bolsonarista, agora apresentado como legítimo representante da esquerda – imagina!
Já em Feira de Santana, o partido, ignorando o recado das urnas, insiste em um mesmo renitente candidato, desde o século passado: o obstinado deputado federal Zé Neto, que parte agora para sua sexta tentativa de eleger-se (foi candidato em 1996, 2004, 2012, 2016 e 2020). Vai enfrentar mais uma vez o ex-prefeito Zé Ronaldo, um adversário que disputou e ganhou quatro mandatos – e por duas vezes elegeu seu sucessor, consolidando para seu grupo político uma hegemonia de 24 anos.
O duelo dos dois Zés está provocando uma intensa movimentação de autoridades do governo estadual em Feira de Santana. A começar pelo governador Jerônimo Rodrigues, que semana sim a outra também visita a cidade carregando um vistoso balaio de promessas, das quais a mais espetaculosa é a implantação de uma linha ferroviária unindo a Princesa do Sertão à capital – nenhuma novidade, aliás, nisso aí: há mais de 11 anos, em maio de 2013, Rui Costa, então secretário da Casa Civil do Governo da Bahia, anunciou a mesma coisa, inclusive informando que seria um trem de passageiros veloz, que circularia com a velocidade de 140 km/h, e que o traçado da linha já estava sendo feito. Só que ficou nisso.
Para um observador mais atento, parece que, finalmente – Aleluia! Aleluia! – o governo estadual descobriu Feira de Santana, pois é extensa a caravana de secretários estaduais em visita à cidade e anunciando projetos, obras e serviços em quantidades nunca vistas. Tudo para turbinar a candidatura de Zé Neto, que dessa vez virou prioridade do PT. Só que ao lado dos bônus há também os ônus decorrentes, por exemplo, da extensa fila diária de pacientes aguardando regulação para um hospital estadual e da crescente sensação de insegurança e medo que assusta os feirenses e, de resto, toda a Bahia.
Já o candidato Zé Ronaldo tem em seu principal apoiador, o prefeito Colbert Martins Filho, a fonte tanto dos bônus como dos ônus. É que apesar de contar com a poderosa máquina administrativa municipal atuando em seu favor, Ronaldo não pode se esquivar da carga negativa emanada do prefeito, cujo governo é apontado como um dos piores da história recente do município. Até agora, Zé Ronaldo tem conseguido de Colbert um distanciamento obsequioso. Mas, à medida que a refrega tomar corpo, ele terá mesmo que se aproximar do prefeito, com todos os riscos que tal aproximação trará aos olhos do eleitor.
Dois candidatos fortes, duas máquinas administrativas poderosas em ação. Esse é o quadro atual da disputa. Vamos esperar um pouco mais para saber qual desses reggaes o eleitor vai comer. Por enquanto, é só bala chovendo para todos os lados.
José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador.