
Tempos juninos, ouço Luiz Gonzaga e lembro-me do avô Antero, sertanejo das caatingas sergipanas. Ele guardava, pendurado com cordas no teto do quarto de dormir, seu ‘caixão de defunto’, de madeira de lei, ‘pra não dar trabalho’ aos outros, quando se fosse dessa pra outra vida. Demorou.
Mas um dia Mãe Zuite acordou, cá na Bahia, aflita com seus pressentimentos certeiros, e não contou conversa; arrochou Seu Zé, meu pai, me apanhou pelo braço – eu nos meus 8, 9 anos – e fizemos uma viagem arriscada, às pressas, até a roça nas brenhas do município de Simão Dias, a tempo do enterro de Seu Antero.
Uma banda de pífaros improvisada, um magote de gente a bater poeira com as ‘pracata’ de couro até o local do sepultamento, a légua e meia, o cachorrinho do véi acompanhando tudo, de rabo baixo, o buracão de sete palmos cavado no chão esturricado, aquele mesmo caixão, o corpo encomendado com rezas, lágrimas e lamúrias, pois Seu Antero era bem conhecido pelas redondezas e querido, um homem bom.
Difícil foi trazer de volta pra casa o cachorro, que queria porque queria ficar velando o túmulo, ao lado da cruz de pau fincada no chão, tarefa cumprida por Tio Nezinho, o irmão mais velho de Mãe Zuite, sempre diligente. O cão, já idoso, costumava seguir Seu Antero pro todo canto que ia. Não durou muito, foi ao encontro do dono, uma semana depois. O mesmo destino, aliás, seguiu o ‘cavalinho’ – assim era chamado – montaria de estimação do Véi, bicho danado de esperto, sabia direitinho os caminhos e os costumes do dono, abria cancelas, estancava diante de qualquer criatura que cruzasse pelas veredas, ‘pra tirar uma prosa’, e enveredava pelas roças e ‘teeiros’ dos compadres e comadres das vizinhanças e cercanias, como Seu Antero gostava que assim fosse, chegado que era numa conversa fiada.
O Cavalinho era doce, gostava de carinho, tinha trote macio, mas tinha suas cismas. Não gostava que qualquer um montasse nele, às vezes dava upa, coices e até desembestava, zangado. Todos tinham ciência de suas manhas. A vó Barreta, que não era boba, não montava nele, usava uma besta mansinha e tinha sela própria, de mulher, nela sentava-se de ladinho, chique. Dias depois que o Vô Antero se foi, o cavalinho caiu numa tristeza de fazer dó, emagrecido, arredio, até que se foi também encontrar com o dono. O animal fora criado por ele, era comum flagrar os dois ‘conversando’, feito gente; tinha o porte médio, pelo marrom, cara e olhares de quem compreendia bem os humores e os quereres humanos.
A morte do Vô Antero trouxe um desalento praquela casa de varanda, chão batido, cozinha com fogão de lenha, quintal imenso, berço de minha infância, então com redes vazias, os cortiços de abelhas se acabando, a velha Barreta, minha Vó magrela e branquela de zói azul contando os dias, a cuidar de gatos e sem saber o que fazer com tantas galinhas ciscando e melando tudo. E aquela casa de farinha lá adiante… como administrar aquilo tudo, já idosa? … que ‘Nezinho nos acuda’. Assim foi, terminou seus dias a espirrar e bradar com as netas numa casinha apertada, na rua, em Simão Dias, perto da rua da feira, a cidade tomada nos fins de semana pelas tropas de burro, mulas, jegues, cavalos a cagar pelas calçadas… aquele cheirão tomando tudo.
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Da Dona Barreta, minha avó amada que tudo sabia, tudo via e de um tudo tomava conta e tenência, recordo-me que, certo dia, pelo amanhecer, depois da sessão de espirros diários, levantou a cabeça e bateu os olhos numa cobra gorda e sadia a descansar preguiçosa sobre o caixão de madeira de Seu Antero, lá no alto. Pra mim, guri, o achado era algo excitante e medonho. Vó Barreta, com uma vara comprida, daquelas de ferrar boi de carro, tangeu a cobra pro mato, não quis matá-la porque logo viu que não era venenosa, era inofensiva. Eu peguei medo de entrar, de dormir naquele quarto, pra mim um ninho de serpentes. Mas Vó Barreta curtia intimidades com cobras, sabia o nome delas, se eram ou não peçonhentas, perigosas. Costumava pegá-las de mão limpa, pelo rabo, e às vezes as sacudia com firmeza, desconjuntando-as. Vi certa vez Seu Antero, alertado pelo cacarejo assanhado das galinhas, acocorando-se ao lado de uma serpente, na sombra de um oitizeiro, esmagando sua cabeça com uma pedra presa na mão, na maior calma. Eu de longe, espiando, as galinhas ao redor.
Acho que vem daí, desse tempo de menino na roça de meus avós meu destemor com cobras. Eram muitas. Tenho todo respeito por elas, seres misteriosos e poderosos. Ajoelho-me até diante delas, como se fossem divindades. Nunca fui atacado. Meu irmão mais velho, professor Eloi, se diz um ‘curado de cobra’. Como se no corpo abrigasse o antídoto da peçonha delas, ou… como se elas, as serpentes, também o respeitassem. Não teme, não mata. Entende-se com as víboras. Creio que sim. É um dom, uma graça. Mãe Zuite contava que flagrou ele, ainda bem miúdo, engatinhando, a brincar com uma serpente toda enrolada no bracinho. Deu um grito tão medonho ao ver aquilo que a cobra se assustou e foi embora, o filhote Eloi querendo segui-la pelo mato, seu brinquedo, curioso. Assim me contaram.