
“Eu me vejo comovida com vontade de cantar”. Esse verso de Sorriso de Banjo, que Jovelina Pérola Negra deu voz, pode definir o que certamente Maryzélia sentiu ao se apresentar no aniversário do Centro Cultural Sesc em Feira de Santana com o show Pérola do Samba. Vê-la no palco do teatro, com ingressos esgotados dias antes da apresentação, público sentado, tão diferente do habitual de todas as rodas de samba que ela sempre fez aqui em sua cidade ou no Rio de Janeiro, onde mora há alguns anos, me fez conhecer uma nova Maryzélia. Não aquela da banda “Os Coisinho” nem a Menina Mary, que Jânio Rêgo tanto exaltou no Blog da Feira quando a sambista iniciava sua carreira, ainda com agudos que há tempos não vemos mais. Maryzelia, com ipsilone como ela gosta de vocalizar, se mostrou madura no palco. Senhora de si, com consciência do espaço, da sua voz, da luz, das marcações. Figurino certo, corpo em forma, além de toda ginga do samba que ela sempre dominou, agora trejeitos sensuais e delicados à la Carmen Miranda (já relacionei Mary a Carmen em outros escritos).
O repertório passeou não só pelo que Dona Jovelina gravou, mas também por quem a influenciou, a exemplo de Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara e parceiros em sua trajetória como Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz. Maryzélia estando na Bahia, usou da capital pra cantar Nelson Rufino e foi até Nazaré das Farinhas pra trazer sambas de Roque Ferreira. De participação especialíssima tivemos Cassiana Pérola Negra, filha da homenageada, com um gogó que se duvidar todo o Tanque da Nação ouviu, irreverente, daquelas que “mata três garrafas bebendo no bico” e entusiasmou a plateia com seus pedidos de “palma de mão, palma de mão”.
O momento mais bonito de sua apresentação foi cantar Sonho Juvenil, que sua mãe gravou pensando nela, e expôs a esperança e preocupação das mulheres negras nesse país. Bom, as duas negonas, Maryzelia e Cassiana interpretaram juntas e em completa sintonia “Feirinha da Pavuna”, samba com letra deliciosa de Jovelina e vou sentir falta de não ter um registro audiovisual desse momento.
A noite foi linda, chegando próximo ao final, tava tudo muito bom, tudo muito bem, então Maryzélia que é afeita a quebrar protocolos resolveu me chamar ao palco. Olhando na minha direção, que tava sentado lá pela décima fileira, na penumbra do teatro, a ex menina Mary do chorinho e dos coisinho me avista e me intima pra subir ao palco. Ela costuma fazer isso em suas apresentações em bares e casas de show, chamando o público pra sambar, uma convocação alusiva à famosa umbigada das rodas de samba. No entanto fiquei surpreso que naquela configuração, no teatro, eu tivesse que exibir meu corpinho de mola no palco. Óbvio que é uma ironia, visto que eu sou um velho cheio de dores, no ciático, no calcanhar e na escápula. Cheguei só o bagaço da laranja (fala minha cumade Jovelina), sambei um pouquinho, resmunguei, ali no palco mesmo, daquela exposição, e carinhosamente Maryzélia usou o momento pra me agradecer a amizade e os textos quase elogiosos (é difícil ser amigo do ídolo) que Jânio publicou com satisfação muitas vezes pela rede ao longo dessa trajetória. Lá se vão 15 anos que eu acompanho, com atenção, interesse e admiração o talento desse mulherão de Feira que hoje os cariocas têm muita sorte de acompanhar. Se é samba que eles querem, ela tem!
Caique Marques é jornalista e produtor cultural. Esse texto está também no Instagram