
“Somos muitos Severinos, iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta.” Esses versos de João Cabral de Melo Neto, escritos em 1955, ecoaram por décadas como um retrato quase clínico da miséria brasileira e, especialmente, nordestina, da fome com endereço certo, da vida severina e sempre à beira da morte. Hoje, 70 anos depois, temos o que celebrar: o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome, conforme anunciado pela ONU neste 28 de julho de 2025.
Segundo o relatório, o país reduziu a insegurança alimentar grave para menos de 2,5% da população. Uma vitória tardia, mas significativa. Uma conquista arrancada a passos lentos, depois de décadas de políticas públicas oscilantes e cicatrizes ainda abertas.
É preciso lembrar: em 2014, o Brasil havia deixado esse mapa pela primeira vez. Mas voltou em 2018, como quem tropeça ao subir uma escada mal construída. A pandemia jogou sal nas feridas. A fome se alastrou, calou panelas e estourou silêncios.
Até o final de 2023, 24 milhões de brasileiros saíram da insegurança alimentar grave. Mas isso não significa que estamos saciados. Porque a fome não é só estatística. Ela é cor, como nos ensinou Carolina Maria de Jesus em seu Diário de Bitita: “A fome é amarela. E quando a gente tem fome, a gente fica amarelo também.”
A mesma amarelidão que tingia os Severinos de João Cabral. A mesma que ainda colore os rostos invisíveis das periferias, dos sertões e dos becos onde o Estado só chega quando precisa limpar a imagem ou reforçar a culpa alheia. A mesma fome que adoece, enfraquece, infantiliza a esperança e adultiza o sofrimento.
Num país tão desigual, onde boa parte da população se acostumou a ver a fome como um problema do outro, ou pior; como oportunidade de autopromoção em redes sociais, na caridade performática que engaja e rende likes e lhe aufere o título de cidadão de bem, que certamente trabalhou enquanto os famintos dormiam, é fundamental que o combate à fome seja uma política de Estado, e não uma vitrine de ocasião.
Sair do Mapa da Fome não é o destino final. É apenas um passo no longo e árduo caminho da dignidade humana.
Que nenhum outro Severino precise ser definido pela cor da fome. Que nenhum outro cidadão precise gritar com o estômago para ser ouvido, porque a vida, embora severina, precisa ser plena. E justiça social que se preze começa pelo prato.
foto: Imagem gerada por IA
Dandara Barreto é feirense, mãe e Jornalista. Atua como coordenadora de jornalismo do Grupo Lomes de Comunicação e é âncora do Jornal da Manhã da Rádio Jovem Pan e do Programa Transnotícias, da rádio Transbrasil FM.