
O benzimento, prática popular que integra corpo e espírito, constitui-se como um dos elementos mais significativos da cultura brasileira. Presente em diferentes regiões e transmitido majoritariamente pela oralidade, tornou-se objeto de estudo de múltiplas áreas do conhecimento, revelando tanto sua complexidade quanto a necessidade de abordagens interdisciplinares. Historicamente, essa prática reflete a pluralidade do processo de formação da sociedade, resultante do encontro entre saberes indígenas, africanos e europeus. No Brasil, o benzimento consolidou-se como forma de medicina popular e devoção católica, exercida sobretudo por mulheres que, em suas comunidades, assumiram o papel de “médicas do povo”, oferecendo cuidado e esperança sem esperar retorno financeiro.
A prática do benzimento articula diversas dimensões — filosóficas, espirituais, políticas, econômicas, ambientais e médicas —, tecendo uma rede de sentidos que ultrapassa o ritual em si. Na esfera comunitária, enraíza-se no cuidado cotidiano historicamente atribuído às mulheres, que se tornam guardiãs da ancestralidade, mediadoras da memória oral e símbolos de resistência cultural. Mais do que curadoras, as benzedeiras assumem múltiplos papéis: mães, educadoras, conselheiras, líderes comunitárias e agentes sociopolíticos.
Esse trabalho se sustenta em três eixos fundamentais:
A espiritualidade, motor da prática e essência da cura.
As relações comunitárias, que legitimam socialmente o saber e asseguram sua transmissão oral.
Os cuidados físicos, fundamentados no uso de plantas medicinais e orientações terapêuticas naturais.
As benzedeiras, assim, podem ser compreendidas como agentes educativos e civilizatórios, capazes de transmitir valores de justiça, solidariedade, cuidado e sustentabilidade. Elas valorizam não apenas os saberes associados ao feminino — como acolhimento e empatia —, mas também o patrimônio cultural das pessoas idosas, reconhecidas como depositárias de experiências e conhecimentos que precisam ser preservados e transmitidos. Nesse sentido, o benzimento se configura como um fenômeno ancestral e contemporâneo, que ressignifica o passado e projeta caminhos para um futuro mais inclusivo e equilibrado.
Foi nesse horizonte que se inseriu minha pesquisa, realizada no bairro São João do Cazumbá, em Feira de Santana/BA. Por meio de entrevistas de história oral, acessei narrativas sobre a origem do bairro e sua relação com figuras históricas como Lucas da Feira e José Cazumbá, homens negros cuja memória permanece viva no imaginário da cidade. Nesse espaço de resistência e memória, encontrei dona Antonieta, conhecida como Tieta. À época, com noventa anos, testemunhava, com vigor e alegria, a vitalidade da prática do benzimento. Suas mãos, ao manipular os galhos verdes, não apenas reproduziam rezas, mas ofereciam esperança, alívio e coragem para enfrentar as dores do cotidiano.
Tieta, além de benzedeira, era liderança comunitária e presença ativa nas missas, encarnando a espiritualidade como prática de cuidado e de fortalecimento coletivo. Sua vida revela como o benzimento ultrapassa a dimensão ritualística, tornando-se modo de vida, elo entre fé, tradição e resistência cultural. A trajetória de dona Tieta no bairro São João do Cazumbá exemplifica a força dessa tradição: mulher de fé e esperança, guardiã de saberes ancestrais e líder espiritual de sua comunidade.
Reconhecer o papel de dona Tieta enquanto benzedeira é reconhecer a dignidade de saberes historicamente constituídos por mulheres que, em grande parte, não foram escutadas — silenciadas pela construção oficial da narrativa histórica, especialmente da história de Feira de Santana. Ainda assim, essas mulheres mantiveram vivos os saberes das comunidades excluídas e se tornaram presenças necessárias em contextos nos quais o Estado não garantia assistência social ou acesso à saúde.
Preservar essa memória e fortalecer essas práticas exige não apenas valorização acadêmica, mas também reconhecimento social amplo e a implementação de políticas públicas voltadas à proteção dos saberes tradicionais e da biodiversidade que os sustenta. Assim, o benzimento segue afirmando-se como fenômeno ancestral e atual, capaz de iluminar o presente e abrir caminhos para um futuro de mais cuidado, justiça e equilíbrio com a natureza.
Encerrando estas palavras, registro minha homenagem a dona Antonieta, a nossa Tieta, cuja vida foi um testemunho de fé, cuidado e resistência. Suas mãos firmes, que transformavam galhos verdes em bênçãos, e sua voz carregada de esperança permanecem como luz para aqueles que tiveram o privilégio de escutá-la. Ao lembrar de Tieta, celebro todas as mulheres que guardaram em silêncio os segredos da cura e, mesmo silenciadas pela história oficial, ergueram-se como faróis em suas comunidades. Tieta não partiu — sua presença ainda pulsa como canto, como reza, como raiz que atravessa o tempo. Tieta permanece em cada gesto de cuidado, em cada bênção que ainda sopra esperança sobre o mundo.
MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO – Pós-doutora em Educação Básica, IEA/USP. Doutora em História Social; Mestre em Ciências Sociais: cultura, desigualdade e desenvolvimento; Especialização em Didática e Metodologia do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira; Especialização em Psicopedagogia Institucional e Clínica; Licenciada em História; Complementação em Pedagogia. Atuo na educação básica desde a década de 1990, com formação em Magistério. Por amor as histórias contadas por meus pais/avós e por saber que o passado influencia o presente graduei em História. Desse conhecimento que me lapidou para diferenças nas relações me aperfeiçoei para educação em todos os níveis, que atuo no presente, buscando novas perspectivas para educação. Sou docente, gestora, pesquisadora e consultora em busca permanente de dinamizar as relações no âmbito educacional, com ênfase nas discussões de gênero e etnicorracial.