Janeiro de férias, férias de roça, tempo de chupar jabuticaba no pé-da-serra, procurar ariri na mata, participar de caçadas com os mais velhos. Janeiro no sertão, dias cheio de novidades de fazer e visitar. O boato chegou de mansinho, não se sabia de onde, talvez trazido pelas Umburanas cheirosas, quem sabe os arengueiros espanta-boiadas ou a fofoqueira velhinha que vendia caças todos os dias por lá? Ninguém sabia quem trouxera a nova, mas ela estava por lá. “Tem um circo na Rua”, dizia o disse-me-disse. Aflição: “vou ver o circo, sair um pouco do fazer-e-visitar”.
E se foi, pelos caminhos do turvar da noite, na companhia de corujas, caborés, da penada alma que ficava na pesada cancela do Morro das Abóboras. Também a lua cheia, do alto da Serra, acompanhou com um olhar brilhante a caminhada tirana. Na Rua o circo. Tinha um trapezista sem medo, um palhaço engraçado, que parecia conhecer a todos do lugar. Teve jogo de faca… Medo… Uma cantora bonita cantou músicas de épocas diferentes, “Eu sem você”, sucesso do momento na voz de Lilian, a imortal Taí, gravada em distante tempo por Carmen Miranda. Bonito!
Embalado pelas românticas músicas, alegre com as férias de ver, deu um giro no pescoço, olhou para cima e a viu. Já ouvira a fama que corria pelas ruas calçadas, o cajueiro aromático havia dito daquela menina-moça linda, a arengueira rosa-graxa da casa de Dona Conchita, roída de inveja, tinha falado da boniteza que ia, pelas manhãs, para a escola com nome de padre. Sabia de ouvir, agora iria sabê-la de ver. Belíssima! Uma calça de cor forte, um camisão dobrado aos cotovelos, um olhar de atenção para o que se desenvolvia no palco. Uma aparição de graça, o maior espetáculo da noite. E era tão simples…
Entre os dois, desde aquele dia, criou-se uma espessa relação, densa, tão densa que era instransponível. Não foram tolas convenções sociais que edificaram o muro, sequer bobas questões que mobilizavam velhas beatas da Rua. Uma timidez inderrotável o manteve em seu canto, com ela gastava apenas o olhar, dela ouvia apenas as muitas histórias contadas por uma das suas, também muitas, irmãs. Uma interessou-lhe especialmente, todos na família da Bela tinham os nomes começados pela mesma letra, inclusive o velho vaqueiro que cuidava da roça. Todos.
Correu à ficha que guardara na carteira, o ingresso plástico do circo que, pequeno furto, ficara para ter uma recordação daquela noite de visões. Sobre a superfície verde e arranhada, em alto relevo, estava a letra que começava toda família. Apertou firme! Não podia perder! Em casa, grande função, como se louco escavador atacou a caixa de madeira grande dos guardados da família. Em vão gritou gritaram pai e mãe, debalde gritaram as irmãs mais velhas: maluqueceu? Procurava um recanto, queria guardar para sempre aquele pedacinho de verde. Jogou coisas para fora, tirou muitas poeiras, espirrou, suou. Extenuado guardou sua lembrança em meio a outros guardados. Arquivou.
No beiço do Rio do Peixe ainda contam a história de um amor que se foi sem lagrimas, de dois amantes que se despediram sem a dor do “já vô m’bora”, de uma louca paixão realizada em segundos de olhares.
Os pés de Tingui, as Trapiás, os grandes Itapicurus falam de uma grande caixa de guardados, dizem que no fundo dela, embaixo de azuis provas escolares feitas no mimeografo, soterrado por infantis diários femininos e amparado por velhos livros de receita, existe um embrulho. Um pequeno pedaço de plástico, verde, envolto em uma camisa de pagão. Naquela ficha está gravado um ji, um diminuto ji, a marca daquele olhar…
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