O artista plástico feirense Jorge Galeano (na foto, com a poetisa Clarissa Macedo no Beco da Energia, em Feira) nasceu na Argentina mas está radicado em Feira de Santana há cerca de 20 anos e aqui construiu, nas cercanias do bairro Pampalona, o seu pequeno refúgio tropical, fonte inesgotável de inspiração para a composição de telas que chamam a atenção pela exuberância.
Povoadas por personagens míticas e paisagens envolventes, pintadas quase sempre com cores quentes e vibrantes, as obras de Galeano ganharam destaque internacional.
Em entrevista à revista Sacada o artista, que há muito também trabalha com arte aplicada à decoração, juntamente com renomados arquitetos que atuam na cidade, falou sobre o início da carreira, sobre a vinda ao Brasil, e sobre Feira de Santana.
Leia abaixo trechos da entrevista publicada na revista impressa e on line ou clique aqui e leia na íntegra:
Sacada – Como começou nas artes plásticas?
Jorge Galeano – Com 17 ou 18 anos, época do movimento hippie, eu tinha uma moto e viajava pela Argentina vendendo artesanato e outras obras. Esse foi meu primeiro contato com a arte. Eu sou um artista que – por ter sido artesão e por ter trabalhado com vários materiais, como madeira, couro e metais – aprendeu a dominar as próprias mãos. Se eu tiver que utilizar o ferro para realizar um trabalho, não preciso mandar fazer, porque sei como se faz, sei trabalhar com solda, assim como sei esculpir uma madeira. Então, isso deu uma versatilidade maior à minha obra.
S. – Mas, além dessa formação autodidata inicial, você também cursou a faculdade de Belas Artes na Argentina, não?
J.G. – Sim. Entrei na Escola de Belas Artes com 19 anos. E ali descobri realmente o meu mundo, porque encontrei uma centena de pessoas parecidas comigo. Foi um período maravilhoso. Como era artesão, os professores me levavam como ajudante. Foi aí que comecei a ver como era esculpir, como era fazer um afresco numa parede. A partir disso, comecei a trabalhar restaurando pinturas em igrejas, sempre para pagar meus estudos. Fui adquirindo um conhecimento prático grande em todas as técnicas, principalmente na aquarela, que hoje utilizo mais. Quando me formei, em 1978, a Argentina estava sob domínio militar. Foi a época mais dura vivenciada pelos argentinos (entre 1976 e 1983 os militares assassinaram cerca de 30 mil civis, entre eles crianças e idosos, segundo estimativas de ONGs argentinas e organismos internacionais de defesa dos Direitos Humanos). Então, muita gente acabou saindo do país. Eu não saí por causa da Ditadura, mas o clima estava tão pesado que decidi sair e viajar pelo mundo. Muitos amigos meus foram para a Europa. Eu saí junto com um quinteto de música latino-americana, porque também sou músico. Viajamos pela costa do Brasil, passamos pela Amazônia e entramos no Peru, onde o pessoal começou a se dispersar. Uns foram para o México, outros para a Europa e eu voltei sozinho para o Brasil, mais especificamente para a Bahia, porque tinha gostado muito daqui. Em Salvador, fiz a minha primeira exposição, com a artista plástica Lígia Aguiar. Assim comecei a minha carreira artística, ainda sem uma linguagem própria, com muitas influências… Só em Feira de Santana, quando me mudei para cá com minha filha, que tinha um ano à época, é que comecei realmente a pintar. Posso dizer, então, que sou um pintor feirense, mas feirense mesmo.
S. – Ao longo desses anos, foram muitas exposições. Queria que falasse um pouco sobre a sua trajetória.
J.G. – Quando comecei a expor em Feira, as pessoas passaram a conhecer o meu nome. Já tinha saído um pouco do regional… Foi quando concorri a um cartaz da Micareta, em 1991, ganhando o primeiro prêmio. Foi um estardalhaço enorme, saiu em televisão, em jornais locais, repercutindo até mesmo no sul do país. E isso me deu um nome. A partir daí, comecei a me lançar mais como Galeano.
S. – Além de trabalhar com pintura tradicional sobre tela, você trabalha com outros suportes. Produz azulejos, mosaicos, esculturas em terracota e intervenções artísticas em bancos de praça, ruas, tapumes. Fale um pouco sobre esses trabalhos.
J.G. – O grafismo de rua nos tapumes que cercam o Museu Regional de Arte de Feira de Santana, atualmente em reforma, foi feito durante o Aberto do CUCA, um evento de arte produzido pelo centro. O interessante é que teve a participação da população. Fiz um desenho como quem desenha no ar, só com fita adesiva. Depois, convidei as crianças e os adultos presentes a pintarem sobre a área que eu tinha coberto. Quando acabaram, tirei as fitas e o resultado foi exatamente um desenho que tinha projetado na mente, mas que, inicialmente, não sabia como iria ficar. Um trabalho fantástico! Tenho outras obras em prédios públicos, como por exemplo na Capela Nossa Senhora do Carmo, localizada no bairro Serraria Brasil, onde fiz um grande painel em mosaico. Coloquei pedrinha por pedrinha. Eu e o pedreiro ficamos pendurados lá uma semana. E olha que morro de medo de altura (risos)! Também deveria ter um trabalho monumental meu na rodoviária de Feira de Santana, porque, em 2005, ganhei o Prêmio Portal do Sertão, promovido pela Sinart (Sociedade Nacional de Apoio Rodoviário Turístico), Prefeitura de Feira de Santana e Uefs, para criar um painel intitulado Boa viagem. Essa obra teria 30 metros quadrados de área e seria instalado numa das paredes laterais da Estação Rodoviária, na Avenida Presidente Dutra. Uma TV local fez uma matéria comigo, os jornais e sites noticiaram, recebi o pagamento, mas, infelizmente, não viabilizaram a obra. E no lugar construíram vários boxes comerciais. Tenho obras também em prédios privados, como é o caso da Galeria Carmac, onde pintei um grande painel, e no Edifício Sawaya, onde fiz um trabalho em mosaico.
S. – Em sua opinião, Feira de Santana ainda trabalha mal a questão ambiental?
J.G. – Não trabalha! Sinceramente? Não trabalha! Uma vez, não lembro quando, vi um secretário de meio ambiente afirmar que “quando alguém planta uma árvore, está plantando um problema”. Se um secretário de meio ambiente diz isso, o que se pode esperar da população? Se há apenas uma árvore, todas as pessoas ficam embaixo, como se ela fosse um guarda-sol. Ninguém pensa em plantar outras… Aqui, as árvores são podadas no verão. Se as árvores nos protegem do sol, como se pode podá-las no verão? Essa mentalidade é absurda. Não consigo entender isso.
S. – Seu estilo de vida denota não apenas uma grande preocupação ambiental, mas também a consciência acerca de um tema que é imprescindível para o ordenamento do espaço urbano de Feira de Santana: a mobilidade. A adoção de práticas sustentáveis e de outros modais de transporte é o caminho para tornar a cidade mais acessível e mais humanizada?
J.G. – Seria perfeito se todo mundo andasse de bicicleta, mas as pessoas daqui ainda acham que é perigoso. Eu uso a minha bicicleta como meio de transporte há mais de sete anos e jamais tive problemas. Nos países de primeiro mundo, como Holanda e Bélgica, a bicicleta é maioria. Aqui não. Aqui um indivíduo chega ao absurdo de comprar três carros. Ouço reclamações constantes sobre o trânsito, mas, em geral, quem reclama tem três ou mais carros em casa. Então, como podem falar mal se não dão o exemplo? Quem pode falar mal são pessoas que, como eu, andam de bicicleta diariamente.
S. – Mas, de qualquer forma, é difícil transitar de bicicleta aqui, não?
J.G. – Sim, mas se mais pessoas andassem de bicicleta, o poder público seria forçado a construir ciclovias. Mas quem anda de bicicleta? Eu e os pedreiros (risos)! As pessoas não associam bicicleta a meio de transporte, e sim a lazer. É preciso reverter esse pensamento. Como sou uma pessoa pública, espero dar o exemplo, mas é uma questão ainda muito complicada.
S. – E o transporte coletivo?
J.G. – Esse é um tema ainda mais polêmico, porque existe no Brasil uma espécie de apartheid violento, mas velado. A classe média não anda em transporte coletivo e não o faz para não se misturar aos pobres. Prefere pegar táxi ou andar a pé. Isso é claro e notório. Se a classe média pegasse ônibus, o transporte seria muito melhor. Em outras cidades, fora do Brasil, pessoas de todas as classes pegam ônibus e exigem o respeito aos seus direitos. Aqui, o transporte coletivo é um dos piores do mundo e as pessoas não reclamam. Se as classes média e alta pegassem ônibus, o serviço seria melhor; se estudassem em colégios públicos, o ensino público seria melhor; se andassem a pé nas ruas, a cidade não estaria esse caos. As classes mais abastadas simplesmente abandonaram a cidade, por isso ela está tão degradada, violenta, suja e ocupada irregularmente por milhares de camelôs.
S. – Seus quadros também são frequentemente requisitados para decoração. Algumas revistas de arquitetura, tanto baianas quanto nacionais, já publicaram fotos de espaços residenciais decorados com telas de sua autoria. Em Feira, muitas clínicas e residências têm trabalhos seus. O mercado feirense também está aberto para esse tipo de obra?
J.G. – De fato, há muitas telas minhas espalhadas pela cidade. E isso desde os anos 90. Eu sempre vendi bem. Teve uma época que fazia consórcio de arte, o que me ajudou muito a sobreviver em períodos difíceis, de grande inflação. Por isso você vai ver muitos quadros meus na cidade. Muitas vezes eu também trocava serviço, porque, para mim, minhas telas são como uma moeda, de modo que até hoje faço trocas.
S. – Como você vê a relação de Feira de Santana com o patrimônio arquitetônico?
J.G. – Praticamente não há mais patrimônio arquitetônico em Feira de Santana. Esse prédio, por exemplo, quase foi demolido. Na época, funcionava aqui apenas o Seminário de Música de Feira de Santana, mas de modo precário, já que não havia luz e a estrutura estava caindo aos pedaços. Foi então que o professor Josué Mello, ex-reitor da Uefs, tomou a iniciativa de implantar aqui esse centro de artes, uma ideia realmente brilhante, que muito contribui para impulsionar a cultura na cidade. Além desse prédio onde o Cuca está instalado e do Casarão Fróes da Motta, também restaurado, só me lembro de mais duas ou três edificações antigas, que não sei até quando permanecerão de pé. Isso é um absurdo! Nos anos 90, li, em um famoso jornal da cidade, um artigo de um jornalista que defendia a ideia de que “lugar de velharia é no museu”. Sob esse argumento desprezível, ele afirmava a necessidade de todos os prédios antigos serem demolidos para darem lugar ao “progresso”. Eu tento dar a minha contribuição, mas fico realmente horrorizado. Aqui ao lado havia várias casas muito bonitas, que foram demolidas para nada, para darem lugar a prediozinhos quadrados, que não são nada, que se transformaram em lojas chinesas, estacionamentos… Isso é terrível! A cidade não tem memória mais. Feira tinha tudo para ser uma cidade única, com mananciais de água pura, com casarios antigos… Se os comerciantes fossem minimamente inteligentes, teriam aproveitado as fachadas de todas as casas. Isso atrairia clientes e turistas, que viriam ver a cidade. Essa ideia de modernização é equivocada. Não é moderno destruir o patrimônio arquitetônico. É moderno mantê-lo e harmonizá-lo com o tempo presente.
S. – Em sua opinião, o que é necessário mudar em Feira de Santana?
J.G. – Feira de Santana precisa se tornar uma cidade mais humanizada. O trânsito é caótico, as pessoas não têm o mínimo de paciência. Falta solidariedade. Solidariedade com o vizinho, com os idosos, com a rua onde se mora, com a própria cidade. Só assim Feira poderá ser melhor no futuro.
Entrevista publicada na versão impressa e on line da revista Sacada (clique)