Na hipocrisia inglesa da Era Vitoriana (1837-1901), foram publicados os primeiros romances baseados no sobrenatural. Em 1849 e 1897 apareceram Frankenstein, de Mary Shelley e Drácula, de Bram Stoker. Nessa época, tida como austera nos costumes, a população cresceu de 17 para 31 milhões de pessoas, a maioria urbanizada. Nas classes mais altas a expectativa de vida era 44 anos; os negociantes viviam 25 e os operários 22. A moral dúbia mandava cobrir as pernas das mesas – e das mulheres – mas tanto na corte quanto fora dela desenvolvia-se um mundo sexual clandestino onde proliferavam o adultério e a prostituição. Existiam ainda as cortesãs, mulheres que cuidavam exclusivamente dos monarcas. No Leste de Londres havia bordéis, salas de espetáculos e de jogos. Nas ruas vendiam-se drogas, sexo e faziam-se apostas. Além disso, havia orgias, espetáculos eróticos, abusos de menores e violência. Em 1888 apareceu o personagem Jack, O Estripador, um assassino em série que escolhia suas vítimas entre as prostitutas e a polícia inglesa nunca prendeu.
Nesse caldo cultural ambíguo, o personagem DRÁCULA, criação de Bram Stoker, é um conde, filho da nobreza, que transformou-se em vampiro. Como tal, é imortal. Não envelhece, cura-se instantaneamente de ferimentos, precisa de sangue para sobreviver e, se ficar sob a luz do Sol, vira cinzas; para matá-lo deve-se cravar uma estaca de madeira no seu coração. Símbolos sagrados, cruz, água benta, hóstias e materiais mundanos como prata e alho lhe são insuportáveis. Não entra em uma casa sem ser convidado; transforma-se em animais como lobos, cães e morcegos. Na sua origem, o personagem vampiro é a personificação do mal.
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A vampirização sexual, através da qual o protagonista seduz, encanta, fascina suas vítimas, ganhou personagem importante, hoje celebridade literária, na pessoa de Nelsinho, do livro de contos de Dalton Trevisan, O Vampiro de Curitiba. Segundo a resenha de Adriana Camargo, ele segue e assedia velhinhas, senhoras respeitáveis, virgens e prostitutas, agoniado e indeciso entre aquela que “molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante”, a viúva toda de preto com joelho “redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro”, a “casadinha” que vai às compras e a normalista. Nelsinho transita por todos os contos, dando unidade ao livro. Obcecado por sexo, vagueia pela provinciana Curitiba atrás de suas vítimas, enquanto aos olhos do leitor vai se abrindo o quadro de uma cidade decaída. Cidade em que se esconde um vampiro no fundo de cada filho de família, conforme ironiza o protagonista do livro. Curitiba esquadrinhada por Nelsinho, que primeiro se vê seduzido pelos braços e pernas de uma sensual garota de outdoor – ou de uma virgem? – e no final para o círculo infernal mais baixo, para o quarto de um bordel ao lado de uma velha prostituta banguela. Ele é o próprio Drácula nivelado à cidade degradada sob as vestes do cafajeste brasileiro. Nelsinho assim como o vampiro é presa da repetição infindável dos seus atos e de sua obsessão que agravam sua solidão: “Tem piedade Senhor, são tantas, eu tão sozinho”.
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No fim do século passado, escritores, roteiristas e diretores de cinema/TV descobriram que a romantização do vampirismo poderia render grandes lucros. Nos anos 90, pesquisas de mercado encomendadas por livreiros e produtores de cinema indicaram haver um público de 13 a 30 anos ávido por aventuras amorosas entre seres naturais e sobrenaturais que dariam origem a certa assimetria de habilidades e sentimentos. Esta seria a fórmula para roteiros mais densos, surpreendentes, inquietantes. Condimentos necessários a uma boa narrativa. Além do mais, a sedução ingênua, a eternização do amor, a descoberta de que seres com poderes extraordinários podem viver sentimentos que os mortais experimentamos, tudo isso formou uma nova base para o colchão dos amantes. Livros, filmes e séries foram lançados e consumidos com avidez: Diários do Vampiro, A Saga do Crepúsculo, True Blood e tantos outros.
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Endemia é uma doença de duração contínua com causa local, restrita a uma determinada área, que normalmente é rotulada área endêmica. A região Amazônica é área endêmica para a febre amarela. A epidemia, por outro lado, é doença infecciosa e transmissível que se espalha rapidamente para outras localidades. Quando a epidemia atinge grandes proporções, passa a ser considerada pandemia. O mundo conheceu uma pandemia de cólera – doença bacteriana que causa diarreia grave e desidratação – entre 1846-1860. Morreram mais de 1 milhão de pessoas na Rússia, muitos milhares em Paris e mais de 15 mil londrinos. Essas mortes não estiveram associadas aos vampiros nem a Jack, O Estripador. O médico inglês John Snow (1813-1858), considerado mais tarde o pai da epidemiologia científica, foi quem correlacionou a proliferação da cólera com águas paradas putrefatas. Ele chamou, então, a atenção dos governantes europeus para a canalização e tratamento dos esgotos, o que, aliás, já havia sido feito na construção do Palácio de Versalhes desde 1670 com a utilização de tubos enterrados.
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Feira de Santana cresceu sozinha e – exceção para alguns poucos e breves períodos – mal orientada por suas elites políticas. Sempre foi entreposto comercial e, por consequência, lugar de gente que chega e parte. Além disso, foi parada obrigatória na rota dos caminhões pau de arara que levavam imigrantes nordestinos para o Sul. Deles, os mais cansados ou esperançosos, desciam das carrocerias, das tábuas que formavam bancos de madeira e tentavam a sorte na cidade. Quando o imperador D. Pedro II a visitou, em 1859, havia 4 mil habitantes, hoje são 620 mil, 92% vivendo na zona urbana. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) é de 0,712 destacando-se entre outros municípios pobres do estado da Bahia, mas classificando-se na 1546º posição entre os 5.570 municípios brasileiros. A esperança de vida é de 74 anos. Cerca de 16% da população vive abaixo da linha da pobreza. A maior parte dos bairros pobres está situada em terreno plano ou pouco acidentado e em antigas lagoas aterradas. Um quinto da população vive aí, em ruas parcialmente pavimentadas, esgotos a céu aberto, com postos de saúde e escolas públicas de atendimento precário. Lixo, fezes e outros dejetos são lançados nas ruas como nas cidades europeias há 200 anos.
O jornal Correio da Bahia trouxe a seguinte informação na sua edição de 14 de abril deste ano: Os casos de dengue na Bahia aumentaram 322% neste ano em comparação com o mesmo período de 2018. Foram 5.871 casos notificados em 158 municípios do estado. No período de 30 de dezembro a 12 de março, foram seis óbitos por dengue, sendo cinco confirmados e um em investigação laboratorial. O município com a pior situação é Feira de Santana, a segunda maior cidade do estado, que teve 2.264 casos de dengue no período, quase 40% de todas as notificações da Bahia, de acordo com dados da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). Feira também concentra a maior parte das mortes que foram quatro na cidade, uma em Salvador e uma em Candeias.
A Secretaria de Saúde do Município de Feira de Santana apresentou relatório sobre a doença: Este ano, até a semana epidemiológica (SE) 28/2019, foram registrados 11.685 casos suspeitos de dengue em residentes no município de Feira de Santana. Dos casos notificados, 1.528 (13,07%) foram confirmados. 372 casos confirmados com sinais de alarme, 18 com dengue grave. No período, há o registro de 8 casos confirmados que evoluíram para o óbito.
A dengue deixa muitas sequelas – quando não mata – sobretudo em pacientes depauperados e crianças: mau funcionamento do fígado; insuficiência renal; agravamento de problemas cardíacos; agravamento de distúrbios neurológicos etc. A dengue, assim como a cólera, tem causa na ausência de cuidados básicos de saneamento e na falta de educação. O vetor transmissor da dengue, da chikungunya e zika vive e se reproduz em águas paradas de esgotos a céu aberto e recipientes inadequados. Os munícipes pobres muitas vezes promovem a limpeza de áreas por conta própria retirando pneus, latas velhas, lixo e outros detritos. Os pobres munícipes assistem passivos ao descaso e à incompetência dos seus governantes que desviam os recursos valiosos do erário para outros fins. Alguns lícitos, porém estapafúrdios. Outros ilícitos, segundo as polícias.
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Na língua portuguesa o verbo vampirizar – transitivo direto e bitransitivo – tem as significações de extrair por meio de abuso, sedução, exploração, extorsão, egoísmo, toda energia, a força, a riqueza – de alguém. O verbo pode ser pronominal, reflexivo, por exemplo na frase: Vampirizou-se de tanto doar. No entanto, nos dias que correm, no Brasil, particularmente em Feira, é acepção praticamente inusual.
Há pelo menos duas décadas a população pobre de Feira de Santana sofre de vampirização por gestores públicos, todos eles notificados e processados pela Justiça por desvios/malversação de recursos do erário destinados à saúde, à educação, ao saneamento básico e até aqueles alocados ao combate de epidemias. Esses personagens – que se pode contar nos dedos de uma das mãos – causaram danos irreparáveis. Mortes de crianças, idosos e sequelas mutilantes na população em geral. A ausência ou atendimentos médico-hospitalares precários produziram o estrago. O sofrimento do povo humilde não constrangeu nem arrefeceu a ânsia dos que sempre agem à socapa com os recursos alheios, principalmente públicos.
Dentre os personagens há um mais habilidoso, sedutor, envolvente, pertinaz. Ele se transformou em chefete, capo de uma corja de sabujos que, em troca de pelancas, entregaram suas almas e participam da extorsão. O povo de Feira vive subjugado, manietado por esse personagem medonho, asqueroso, que ainda se mantém atuante por conta de poderes sobre ou supranaturais. Muitos acreditam que o único símbolo – não se trata de alho, hóstias e cruzes – que pode afastá-lo da sociedade feirense é o escudo da Polícia Federal, com força-tarefa vinda de Brasília. De outra forma, O Vampiro de Feira continuará enriquecendo sua nefasta biografia e os próprios bolsos, é claro! Como diria um comerciante local.