por André Pomponet*
– O sistema é Deus, o sistema é não matar, o sistema é não roubar, o sistema é não adulterar…
As páginas da Bíblia, amareladas pelo manuseio, agitavam-se sacudidas pelos dedos nervosos. O incessante movimento dos braços entufava o paletó preto, puído, sob os sovacos e nos ombros. Ninguém escutava aquela fervorosa pregação: só os pardais piavam pios festivos nos galhos dos oitis. Mais adiante, pombos ávidos – brancos, pretos, encardidos – marchavam e contramarchavam, impacientes, à espera das sobras dos almoços servidos no bar do coreto.
Na praça vazia, a pouca gente dedicava-se a outros afazeres: um moía cana para o caldo-de-cana do cliente; um motoboy, entediado, catava novidades examinando a tela luminosa do celular; comerciários proseavam, despreocupados, naquela manhã do final de janeiro com freguesia escassa. Mais além cobradores anunciavam, aos berros, os distantes destinos do transporte alternativo.
– O Reino de Deus está próximo! Se arrependa dos seus pecados!
Aquele pregava com equipamento do som. Na artéria agitada – uma ladeira suave – o trânsito de ônibus, de carros, de utilitários, de motos, de motonetas, de bicicletas, era incessante. Ali perto, no banco do abrigo de ônibus, a única ovelha potencial estava indiferente. Era um morador de rua, andrajoso, muito sujo, imerso naquele limbo comum a quem perdeu totalmente a sanidade. Sequer notava o ardoroso pregador.
O equipamento de som, a solenidade do sapato lustroso, do chapéu e do paletó e, sobretudo, as palavras candentes, exigiam plateia. O pregador arremessou, então, um olhar aflito em volta: só um transeunte ia subindo, arfando de cansaço, depauperado pelo calor abafado da manhã de segunda-feira. Encarou-o, súplice: o sujeito desviou o olhar úmido de suor e esboçou um sorriso de escárnio. No começo o pregador se desconcertou. Mas voltou à carga:
– … As chamas do inferno acolherão os descrentes, os que não aceitam o Evangelho, os apóstatas…
O pregador pregava com voz rascante. E o equipamento de som emitia um som surdo, abafado, desagradável, que distorcia as palavras. Aquilo foi acompanhando o transeunte mesmo quando ele dobrou a esquina seguinte, deixando atrás de si as maldições sobre os incréus, as labaredas e o Apocalipse…
André Pomponet é jornalista
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