
por André Pomponet*
Provavelmente nenhum bairro de Feira de Santana nasceu como o conjunto George Américo: cercado de polêmicas, disputas judiciais e alvo da atenção até da imprensa nacional.
O começo de tudo tem data precisa: madrugada de 28 de novembro de 1987, quando cerca de cinco mil pessoas – a estimativa é da imprensa, à época – ocuparam o antigo aeroporto da cidade que os mais antigos denominavam “campo de aviação”, contíguo ao bairro Campo Limpo. À frente do grupo estava o intrépido líder dos sem-teto, George Américo Mascarenhas, então com 26 anos, conhecido como “rei das invasões”.
O Jornal do Brasil – diário carioca que foi o principal jornal impresso do País durante muito tempo – registrou, na edição de 5 de dezembro daquele ano, que o terreno “foi ocupado numa ação programada pelos sem-teto, em que não faltaram o hasteamento da Bandeira do Brasil e o canto do Hino Nacional”.
A publicação também registrou o cenário inicial daquilo que lembrava muito um acampamento ou um campo de refugiados: “Muitas famílias já estão morando em toscos barracos improvisados, feitos à base de lona, plásticos e restos de materiais de construção. Outros invasores apenas demarcaram os lotes”.
Quem não gostou daquela ocupação – a 21ª liderada por George Américo, conforme contabilidade dele próprio – foi o então prefeito José Falcão da Silva, do PDS, que ameaçou: “É melhor que eles saiam através da Justiça que pela força da polícia”.
A primeira providência do então prefeito foi requisitar a reintegração de posse à Justiça.
A segunda foi anunciar um recadastramento das famílias, que seriam contempladas no ano seguinte com moradias baratas em um plano de habitação popular, o Planolar.
Ironicamente, muitos ocupantes tinham cadastro anterior na iniciativa, mas nunca foram atendidos.
Protesto – Dias depois da ocupação, um protesto defronte à prefeitura reuniu mil manifestantes, sob a batuta de George Américo, que anunciava resistência: os sem-teto só sairiam do terreno “se for diretamente para o cemitério”. A manifestação paralisou o centro da cidade.
Àquela altura, a Justiça já havia concedido a reintegração de posse à prefeitura. Foi o que noticiou o JB em 15 de dezembro de 1987.
Veio, então, o fato inusitado: a Polícia Militar não cumpriu a determinação judicial de reintegração, o que deixou o então prefeito José Falcão indignado, queixando-se da insubordinação do comandante local da PM: “Nunca vi uma coisa dessas”, disse e o Jornal do Brasil de 18 de dezembro registrou.
Waldir Pires, governador da Bahia à época, alegou para o presidente do Tribunal de Justiça que a desocupação implicava em “problemas sociais graves, porque a ocupação é muito grande”.
Até aquele momento, parecia que a reintegração era questão de tempo: bastava à Polícia Militar definir a melhor estratégia para remover os ocupantes.
A tensão crescia com a expectativa da desocupação forçada do antigo campo de aviação. Dias depois, antecipando-se a possíveis distúrbios, o governador Waldir Pires determinou a desapropriação da área e a incluiu no programa Minha Casa.
A medida representou uma vitória dos sem-teto, no geral, e de seu líder inequívoco – George Américo – no particular.
Prisão e morte – Aquele tenso dezembro de 1987, no entanto, ainda reservaria algumas surpresas. Uma ordem de prisão foi expedida contra George Américo e ele acabou preso, conforme matéria do Jornal do Brasil do dia 24, véspera de Natal: “Foi preso ontem e levado para o Departamento de Polícia do Interior (Depin), em Salvador, ‘para evitar comoção social, ajuntamento os protestos’ dos favelados”.
A prisão aconteceu na casa da sogra dele, no bairro Jardim Cruzeiro, quando estava em companhia da mulher e das duas filhas. A ordem de prisão foi expedida sete dias antes e a juíza responsável pelo caso chegou a acusar a polícia de fazer “corpo mole” para prender a respeitada liderança.
Na mesma matéria, há uma declaração premonitória de George Américo, logo depois da sua prisão: “Só paro quando me matarem ou quando não existirem mais famílias sem teto”. Seguiu com um discurso candente: “Ninguém ajuda o povo carente, que precisa de uma pessoa esclarecida para defender seu direito de morar. O povo produz tudo e não tem nada. Os poderes públicos só fazem alguma coisa quando acontecem as ocupações. Aí sim, a solução aparece”.
George Américo era dado como vereador eleito no pleito que se aproximava, de 1988. Alguns já previam uma votação consagradora, pois se tornara liderança indiscutível.
A morte – nunca esclarecida pela polícia – interrompeu a trajetória de maneira trágica.
Seu cadáver foi encontrado no dia 5 de maio de 1988, às margens do rio Jacuípe, com dois tiros de escopeta.
Uma multidão acompanhou o sepultamento no Cemitério São Jorge. A precária invasão inicial se converteu em conjunto, que ganhou o nome do seu principal líder. Hoje, é uma das principais comunidades da maltratada periferia feirense.
Mesmo morto tão precocemente, George Américo tornou-se uma das principais lideranças comunitárias da História da Feira de Santana.
André Pomponet é jornalista
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