– Meu amigo, eu não acredito na ciência, não. Eu acredito é na Palavra de Deus. Está escrito na Bíblia que a gente ia passar por isso. E está lá, em Isaías 26, no versículo 20. É só você olhar…
Pensei em perguntar se ele usava celular – usa – e tomava remédio, o que também faz. São coisas criadas pela sacrílega ciência do homem, fruto de sua sabedoria secular. Mas resolvi deixar a bola passar. Melhor não gerar incompatibilidades, sobretudo num momento melindroso como o que vivemos. Estava indignado com a perspectiva de fechar seu comércio – um micromercado – em função da pandemia de coronavírus. Prosseguiu, exaltado:
– Sempre que tem crise quem ganha é o grande empresário, é o banqueiro. Pobre sempre perde, ainda mais numa hora dessas.
É, assumidamente, eleitor do petê e tem aversão a Jair Bolsonaro, que preside o Brasil. Mas incorporou a retórica antissistema do “mito” que seduziu tanta gente em 2018. E lança mão dela em momentos de sufoco, como agora. É fácil assimilá-la, já que se tornou muito popular em grupos de aplicativo de celular. Assim como o discurso apocalíptico, de inspiração religiosa, que se renova com frequência espantosa.
Depois do papo, recebi muitas mensagens com o versículo mencionado. É tão abrangente que se aplica a inúmeras situações. Provavelmente fez sucesso durante a epidemia de gripe espanhola que se alastrou pelo mundo há pouco mais de 100 anos. E, mais remotamente, na Europa da Idade Média, deve ter sido invocado quando a peste bubônica dizimou boa parte da população daquele continente.
O brasileiro gosta de enxergar, nos fatos do seu cotidiano, o enredo bíblico. As sete pragas lançadas sobre o Egito, por exemplo, fazem muito sucesso, são resgatadas com frequência. Talvez a associação ajude muitos a se enxergar no caminho reto, que conduz ao paraíso. Em momentos de grandes turbulências – crise econômica, pandemia, instabilidades políticas – devem oferecer amparo muito maior.
Sem dúvida, a fé é salutar à medida que pacifica o espírito e empresta serenidade para enfrentar as agruras que estão aí, se avolumando. Mas, num momento em que uma desconcertante e inesperada pandemia se alastra, é melhor buscar orientação na ciência, o que não se incompatibiliza com a preservação da fé. Foi o que recomendaram as mais sensatas lideranças religiosas do País, desde o início da pandemia.
Alguns, porém, insistem em manter suas celebrações e cultivam ideias confusas, como as que o interlocutor do diálogo reproduzido acima utilizou. Buscando pacificar o embate, fiz a recomendação que está aí, sendo martelada o tempo todo:
– É melhor lavar as mãos.
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