Os dois meninos atravessaram a avenida Maria Quitéria e enveredaram por uma rua lateral ali nas imediações da Queimadinha. Era início da tarde. Ambos maltrapilhos, andrajosos. O mais novo segurava um saco menor e sacudia-o, com um movimento de braço que denotava a brincadeira: talvez tenha aí uns sete anos. O mais velho – doze ou treze anos – transportava um volume muito maior e se empenhava na tarefa.
Os sacos eram transparentes o suficiente para perceber-se que a dupla carregava centenas de latas amassadas. Provavelmente iam vender o conteúdo num depósito de material reciclável qualquer. É a degradação da infância, evidente nesses tempos de escassa sensibilidade social e de assustadora pandemia do coronavírus.
Anos atrás muitos otimistas julgavam que, em pouco tempo, situações do gênero fariam parte do passado no Brasil. Veio, então, a terrível crise econômica legada por Dilma Rousseff e pelo petê. Vieram, na sequência, Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (sem partido) que reduziram violentamente os já escassos recursos para a assistência social. Por fim, começou a pandemia de coronavírus, que está tornando tudo muito pior.
A ajuda emergencial de R$ 600 aprovada pelo Congresso Nacional para as famílias dessas crianças já deveria estar na conta. Pelo que planeja o “mito” e sua trupe, isso só vai acontecer no dia 16 de abril. O que farão milhões de famílias Brasil afora enquanto não chega o benefício emergencial, o “corona voucher”? Sairão às ruas para batalhar algum trocado da forma mais precária possível. É o que tudo indica.
Nesse cenário, não faltam empresários inescrupulosos defendendo a reabertura do comércio, aproveitando as agruras que afligem os mais pobres. Fingem empatia, mas só pesam nos seus lucros. Por que não utilizam do poder de pressão de que dispõem para cobrar o pagamento imediato do “corona voucher”? Setores como supermercados, padarias e açougues seriam imediatamente beneficiados. Mas…
Aqui na Feira de Santana a prefeitura anunciou que mais 5,7 mil famílias serão contempladas pelo Programa Bolsa Família. 1,2 mil – que tinham sido excluídas pelo governo do “mito” no início do ano – serão reinseridas. Outras 4,5 mil serão incluídas. É um recuo tímido no retrocesso, já que no ápice da iniciativa – em abril de 2012 – 51 mil famílias eram contempladas. Agora, serão 35 mil. Pouco diante das necessidades decorrentes de tanta crise.
Por que as lideranças políticas locais não pressionam pela antecipação do pagamento do benefício emergencial? O próprio prefeito, vereadores, deputados estaduais e federais pouco se manifestam. E se o fazem, fazem de forma tímida. Mesmo sendo da base do “mito” deveriam cobrar, de maneira republicana. Mas o que há é silêncio, muito eloquente.
Caso, desesperado, o povo pobre vá às ruas, o coronavírus tende a se propagar com mais velocidade, atingindo mais gente. Unidades de saúde ficarão superlotadas. Será o horror, enfim. O que fará a classe política feirense? Vai se limitar a erguer as mãos para o céu, indagando a causa de tamanho castigo, nalguma catarse profana?
ilustração: azulejo com a heroína Maria Quitéria, no Map em Feira de Santana
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