
Chove com feroz regularidade em Salvador há cerca de um mês. Já mencionei em texto anterior. O vento, soprado do mar, foi assustador em algumas noites. Sacudia o vidro das janelas e assoviava nas quinas dos edifícios como nos filmes de terror. E sempre a chuva, embaçando janelas, escorrendo caudalosa pelas fachadas dos edifícios, acumulando-se em poças, convertendo-se em torrente. Nem é preciso mencionar o céu escuro, plúmbeo. As nuvens filtravam uma luz metálica, melancólica.
A capital atravessa aquilo que se batizou de estação das chuvas. A expressão me agrada: tem até uma inspiração literária. Não há nada de errado no script, portanto: maio é sempre mês chuvoso em Salvador. Somente em junho, com a chegada do sol cálido inverno, é que as tempestades devem se dispersar.
Mas em maio também há dias de sol na capital baiana. Neles, a luminosidade é magnífica defronte ao mar. Há mil nuances que vão se sucedendo ao longo do dia. E tudo depende da disposição das nuvens, da interação com o sol, desses fenômenos atmosféricos que nem sempre a palavra alcança. O êxtase visual – quase um transe divino – traz uma ponta de frustração: não é possível traduzir aquilo. As palavras, coitadas, se acanham.
Quem pode se aventurar numa caminhada – a cautela com a pandemia recomenda poucos movimentos – não vem deixando de se extasiar com o Porto da Barra nos últimos dias. Ao meio-dia quase não há pedestres pelas cercanias. Quem caminha, contempla Itaparica à frente, em detalhes: morros curtos arredondados, as construções que se estendem pela orla, até algumas árvores, miúdas à distância, no cume dos morros.
Que dizer, então, das ilhas e do fundo da Baía de Todos os Santos? São perfeitamente visíveis da praia do porto. Numa manhã de luminosidade irretocável estão lá, com suas curvas suaves, com seu azul indevassável, com seus silêncios apenas intuídos. Sem aquele movimento habitual, fica fácil parar e ver. Com menos carros circulando a névoa de poluição se dissipa, aumentando a visibilidade.
É muito raro ver o agitado Porto da Barra naquela quietude. Mesmo nos meses de chuva, quando o soteropolitano – avesso ao céu cinzento – se retrai. Na capital, as medidas restritivas aproximam-se dos 60 dias. E devem se estender ainda mais, porque a pandemia, por aqui, ainda não chegou no seu auge.
Não é exagero afirmar que as lembranças desses dias incomuns vão sobreviver na memória coletiva por décadas.
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