Nunca esqueci a forma como fui apresentado ao que é uma ditadura. Era por volta de 1981, no máximo 1982. Menino, eu aprendia a desenhar usando caneta esferográfica e papel pardo, de embrulhar pão. Foi na rua da Palma, lá no Sobradinho. Meu pai desenhava uns cavalos que me encantavam, com detalhes da crina e das musculaturas do pescoço, do dorso e das pernas. E eu tentava imitá-lo, alcançar aquele nível de perfeição que me impressionava.
Numa dessas seções, meu pai desenhou uma série de cavalos e começou a nominá-los: “Castelo Branco”, “Costa e Silva”, “Médici”, “Ernesto Geisel” e, por fim, “Figueiredo”. Eram os generais-presidentes da nefasta ditadura militar. Ele ria muito e eu, naquela idade, não entendia o gracejo. Minha mãe se aproximou, alarmada: não convinha fazer aquelas piadas, sobretudo ali perto da janela. E ela olhava desconfiada, lá para fora.
Muitos anos depois presentearam uma das minhas tias, em Salvador, com um iracundo jornal estudantil que produzíamos nos fervilhantes tempos de movimento estudantil na Uefs. Ela leu o jornal inteiro, julgou os impropérios muito cabíveis – eram os anos do governo Fernando Henrique Cardoso – e arrematou, alarmada: “Meu filho: você não tem medo de ser preso, não?”
Pensei que, vida afora, transmitiria esses episódios quase como anedotas. No passado, até era assim. Julgávamos – ingenuamente – que ridículos ditaduras e ditadores ficariam cristalizados no triste passado da América Latina e do próprio Brasil. Ledo engano: eis que, já maduros, somos forçados a conviver com ameaças que podem se confirmar lá na frente, caso o diabo siga zombando do Brasil como vem fazendo.
São mais que inquietantes – são estarrecedores – os sinais que vem lá do Planalto Central. No começo, muitos desdenhavam, debochados: uma ditadura de fanáticos, quase um califado bíblico-miliciano? E torciam a cara, descrentes. “Não há mais espaço para isso”, repetiam, com hesitante fé na fórmula. Os meses vão passado e, cada vez mais, o Brasil vai se reaproximando daquele passado nocivo de décadas atrás.
Há, despontando, um esboço de entendimento, de convergência, entre os setores mais esclarecidos da sociedade. Mas será que dá tempo garantir uma resistência mais organizada ao horror? Pode ser que não. Os golpistas, a propósito, tendem a nem se segurar tanto tempo no poder, porque, de fato, o mundo é outro sob uma série de aspectos. Mas que não se descarte um caudaloso rio de sangue enquanto durar a insanidade.
Hoje sei que era feliz naquele começo dos anos 1980: criança, não vivi as angústias e a barbárie do regime que naufragava. Depois, vi pela tevê a faina pelas Diretas-Já, testemunhei a Assembleia Nacional Constituinte pelo noticiário e vivi a reconstrução do Brasil que se estendeu – às apalpadelas e aos encontrões – até 2016. Pouco mais de 30 anos de democracia, uma eternidade para os padrões disto aqui. Não deixo de me considerar privilegiado por sentir o bafejo das liberdades cívicas durante tanto tempo.
Pois o recreio, pelo visto, acabou. O que virá? Vai depender de incontáveis variáveis. Inclusive da pandemia do Covid-19 que, pelo visto, foi esquecida pela matilha sedenta para assaltar o poder…
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