Em dias tão trágicos, como os que passamos agora, devido à pandemia mundial do coronavírus e seus desdobramentos, ler um texto que faz referência à História e a Memória de Feira de Santana é reconfortante. Ainda mais, quando esse texto trata de um tema sobre o qual venho me dedicando há algum tempo. Os historiadores têm essa possibilidade de recorrer aos rastros de vida deixados pelos que já se foram, para criar novas perguntas sobre as experiências no presente. Se ela não conseguir responder a contento, tem como virtude distrair (Marc Bloch) e o exercício da dúvida sobre as versões apresentadas se torna ainda mais interessante.
Além disso, cabe a nós discutir o fascinante mundo das memórias que se criam sobre os acontecimentos do passado e nos inquietam hoje, através do ato de lembrar. As lembranças são essa incrível competência humana de reforçar pontos do cruzamento dos tempos idos com o que desejamos que seja marcado agora, e assim, refundamos novos momentos para o futuro.
Refiro-me ao texto “Dia Mundial do Livro e ‘Feira de Santana’ de Rollie Poppino”, no Blog da Feira do último dia 23. Na verdade, a nota de Janio Rego reproduziu a narrativa feita em 2018 sobre o cinquentenário da publicação “Feira de Santana”, fruto da tese do autor californiano Rollie Edward Poppino, escrita em 1953, publicada em 1968 e tomada por muitos como principal referência para o estudo da história do município. O registro do jornalista tencionou para que algo fosse feito em prol da memória a respeito do próprio autor e do livro. A reclamação surtiu resultado. Uma rua recebeu o nome de Rollie Poppino, em homenagem ao historiador[1].
Também em 2018, André Pomponet escreveu sobre o livro, na Tribuna Feirense, dois meses antes da mudança do nome da rua e propôs algo rico: uma reedição do texto do norte-americano[2], que, na época, foi editado na UFBA e produzido pela editora Itapuã. A retomada da discussão sobre o papel de Poppino ao visitar Feira de Santana, uma possível reedição do texto e as evocações sobre seu nome nos levam a algumas inquietações.
Mais do que para ser celebrado como fonte incontestável para as referências da história de Feira, Poppino e seu livro poderia ser retomado como objeto de estudo em si, tanto a obra, como o autor, as memórias que fundou, a conjuntura de sua escrita, em intercâmbio intelectual entre o Brasil e os Estados Unidos em 1951-1953.
A versão original da tese, “Princess of the Sertão: A history of Feira de Santana”, defendida em Stanford em 1953, está disponível nos arquivos da Universidade da Califórnia, em Davis, local onde Poppino trabalhou posteriormente, a partir de 1961, como diretor do Departamento de História. O texto original, inclusive, já foi disponibilizado em formato digital, segundo Dimas Oliveira[3], através de Carlos Brito e da Fundação Senhor dos Passos, a algumas instituições locais, como a UEFS. Mas esse acesso poderia ser maior. Alguns números da edição de 1968 ainda circulam nas bibliotecas de Feira de Santana e da Bahia e talvez uma reedição refrigerasse o debate.
Como se sabe, o estudo realizado por Rollie E. Poppino foi fruto do acordo bilateral entre a Universidade de Colúmbia em Nova York, pela via da criação do Programa de Estudos Sociais Estado da Bahia, montado em 1950 pela Secretaria de Educação e Saúde, no então governo de Otávio Mangabeira. Segundo Janio Rego e outros atestaram, pouco se sabe sobre sua estadia em Feira de Santana. Até então, informações de particulares sobre a recepção de Poppino demonstram um acolhimento positivo do autor.
Algumas informações circulam na mídia sobre o tema, mas podemos destacar mais outras. As menções feitas, nos documentos do Projeto Colúmbia, a estudantes bolsistas, auxiliares de pesquisa, apontam para o suporte que elas ofertaram ao programa baiano, indo a campo para fazer a coleta de dados. Na maioria das vezes, esses homens que vieram para o interior da Bahia[4] não adentravam as residências para fazer anotações e questionários, mas deixavam essas tarefas para as mulheres, que também garimpavam os materiais nos arquivos. Ficava mais fácil, em uma sociedade de herança patriarcal como a nossa, receber as “moças” do projeto do que o pesquisador, diretamente e aqui fica uma questão sobre o modo de trabalho nos arquivos e por onde o autor caminhou.
Por outro lado, dispôs dos materiais de outros arquivos e de acervos particulares. Boa parte do material utilizado, como exemplares de jornais feirenses (Poppino recorreu muitas vezes aos editoriais celebrativos do Jornal Folha do Norte e às colunas sobre cultura local) estão hoje sob guarda da sua coleção particular, em Davis.
Poppino havia chegado em Salvador com sua companheira, Lois Lamberson Poppino, que precisou viajar de volta por conta do nascimento do primeiro filho do casal. Frequentou as reuniões do projeto como estudante de pós-graduação financiado, principalmente, pela recentíssima Fundação para o Desenvolvimento da Bahia (FDC-BA) e por agências privadas norte-americanas que ofereceram alguns recursos. Mas é fato que, a maior parte dos custos vieram da própria secretaria, na Bahia. A FDC era uma espécie de instrumento pioneiro no Brasil nesse sentido e patrocinou a estadia desses pesquisadores, os equipamentos utilizados, os recursos internos das viagens de campo e afins.
Outro ponto que chama a atenção é sobre a articulação feita por Carlos Valadares. O prefeito da cidade era Almachio Alves Boaventura, liderança que sofreu grande oposição entre os vereadores, devido aos conflitos internos por reconhecimento de alianças e da formação de frentes de disputa pelo poder na Câmara, que inaugurava suas sessões. Uma das querelas locais era a tensão que havia em reconhecer-se Otávio Mangabeira como líder no estado e seu projeto de interiorização dos domínios políticos do governo. Para esse projeto, o governo da Bahia precisou articular acordos com representantes da UDN e do PSD em grandes cidades do estado. O então deputado feirense Carlos Valadares, que se tornou líder da Assembleia Legislativa da Bahia, assumiu o cargo de governador algumas vezes, a despeito do estado de saúde de Otávio Mangabeira, e acabou se tornando um dos grandes responsáveis pela chegada de Poppino a Feira de Santana. Segundo os registros da minha pesquisa, Valadares recebeu Thales de Azevedo e Rollie Poppino em sua residência, em Salvador, para tratar do assunto. Depois de feitas as devidas apresentações, Poppino ainda permaneceu um tempo em Salvador, até que organizasse o início da pesquisa, contando com Valadares para fazer as apresentações em Feira.
O destino de pesquisa que Poppino escolheu era uma espécie de objeto-chave para discussão da economia do interior do estado. Quando Poppino veio a Feira de Santana, a cidade era uma parada obrigatória para viajantes que pretendiam chegar a Salvador, que fincavam estadias e dormida no local, até que retomassem seu percurso até a capital da Bahia. A recepção aos migrantes nordestinos já não era tão celebrada, quando chegavam às centenas para procurar trabalho, ou terminavam por se estabelecer nos mercados de rua da cidade, somando forças ao contingente de desabrigados, quando migravam na verdade para outras regiões do país. Era uma preocupação do governo da Bahia, que contou com o suporte de sua Secretaria de Educação, organizar os estudos do Projeto Colúmbia, em favor da produção de respostas práticas e rápidas para a situação econômica do estado. Feira de Santana passou a figurar como um dos focos da atenção daqueles investimentos e possíveis soluções.
Treinado em línguas latinas pelos programas estratégicos norte-americanos de Guerra, dedicou-se ao estudo da América Latina e do Brasil, seguindo depois uma trajetória de diplomata e historiador, ao trabalhar como funcionário de pesquisa do Departamento de Estado. Essas e outras tantas informações sobre sua vida nos fizeram suspeitar que Poppino teria atuado na Bahia a partir das demandas norte-americanas de pesquisa voltadas para a política externa, o que podemos considerar até então como válido, caso não pensemos que este intento era única e exclusivamente o motivo de sua chegada aqui.
Ao longo de sua carreira como funcionário do Departamento, produziu textos específicos sobre a política externa brasileira nos anos 1960 e 1970, em revistas especializadas (sobre História e sobre relações internacionais), a edição de um livro sobre o comunismo na América Latina (1963), o ensaio Brazil: The Land and People e outros artigos, que se tornam indícios claros do tipo de conhecimento que o brasilianista organizou. Poppino seguiu os passos de alguns cientistas políticos de sua geração que reproduziram o anticomunismo em suas narrativas sobre o Brasil e sobre a América Latina. Podemos dizer, nesse caso, que o trabalho que realizou estava muito próximo da produção do Departamento de Estado e do tipo de análise das Relações Internacionais que ficaram ao lado do “regime autoritário”, ou, na palavra dos historiadores que analisaram a questão de outro modo, a ditadura, que se instalou a partir de 1964 no Brasil.
Mas, ao tratar especificamente de sua vinda à Bahia, não é esse “tipo” de americanismo que encontramos. É preciso ver que o imperialismo norte-americano fez parte da trajetória de Rollie Poppino em outros termos. Foi uma via de mão dupla. Na sua visita, não ocasional, aos estudos planejados pelos intelectuais baianos dos anos 1950, o jovem Rollie Poppino ainda estava reunindo experiências de viagens ao seu currículo. Naquele momento, não podemos dizer que a chegada do autor foi, por si só, um ato “americanista”. É preciso olhar internamente para verificar o americanismo que o trouxe a Feira.
Encontramos sim, um movimento pró-americano, com raízes domésticas, entre os intelectuais que o convidaram e que parece ser o mesmo que se reverbera entre os que até hoje evocam as memórias de seu trabalho como um exemplo sacralizado de narrativa da história de Feira de Santana. A presença do americanismo na Bahia pode ser creditada aos atos de Anísio Teixeira, associado aos de modelos de educação da Universidade de Colúmbia, ou do aumento dos acordos com os Estados Unidos no governo de Otávio Mangabeira – que envolve remessas de dólares, compra de trigo e outros – mas eu prefiro demarcar sua forte influência no modo como acreditou-se que um olhar “estrangeiro” seria o mais autorizado para abraçar a causa da pesquisa sobre as tradições comerciais de Feira de Santana e sua importância para a economia do estado.
Tal comportamento foi muito presente nas décadas de 1950, 1960, 1970, quando as ciências sociais no Brasil demarcavam seu espaço nos circuitos acadêmicos internacionais, mais permaneceu como influência na escuta da opinião dos “brasilianistas” e ainda hoje incomoda, de certa forma, os pesquisadores que chegam ao Brasil embebidos dessa imagem de autorização de sua fala como sendo superior às conclusões internas de interpretação da realidade brasileira.
Dado o seu devido reconhecimento (produzi um capítulo inteiro da tese para discutir o livro sobre Feira de Santana), já há inúmeros trabalhos que se esforçaram em ampliar, superar, criticar e revisitar aquilo que foi dito no livro de Poppino.
A riqueza de seu trabalho é inegável. Poppino colocou Feira de Santana em um circuito internacional de estudos sobre a história da pecuária e da interiorização da exploração econômica, inaugurou preocupações sobre os modos de vida no Sertão da Bahia e as fronteiras da região do Agreste, fez um esforço considerável em caracterizar a produção e as relações de trabalho locais, tudo isso em um único volume, ou numa tese. Foi utilizado em diversos documentos oficiais de Feira de Santana, como o planejamento urbano de 1969 e as avaliações posteriores e deu suporte, inclusive, para inúmeras questões de pesquisa que foram levantadas no campo da História, da Geografia, Economia, enfim.
As principais questões dirigidas a seu trabalho ocorrem fundamentalmente por causa das metodologias aplicadas para observação da realidade local na época. Aliás, essa metodologia foi muito importante em revelar o papel regional do Município ou que, para estudar Feira de Santana, é inicialmente decisivo conhecer a sua zona rural. Mas os “estudos de comunidade” avaliavam a realidade de maneira homogênea, refutando as abordagens que pudessem partir da observação das relações sociais a partir de conflitos. O olhar de Poppino cristalizou alguns estereótipos do mundo do trabalho a partir de modelos e já se foi dito também que o autor silenciou a existência das religiões de matriz africana.
É crucial dizer que a sua validade, finalmente, enquanto documento, é principalmente reconhecida pela dinâmica de discussão que pode proporcionar e não pela sua canonização. Não é certo ainda que possamos dizer que haja uma “historiografia feirense”, mas já há uma quantidade expressiva de trabalhos sobre a História de Feira de Santana, focando em sujeitos diversos e assim, em vários programas de pós-graduação, inclusive alguns já publicados. Isso nos leva a questionar o debate sobre o teor insuperável do livro que circula na mídia e resgatá-lo como elemento fundamental para pesquisa da história de Feira de Santana e região, como objeto de estudo, em diálogo constante com as novas produções da história local.
[1] De acordo com a Lei de número 3838, de 4 de maio de 2018 nomeia a antiga rua de nome “Alegria” por Rollie Poppino.
[2]http://www.tribunafeirense.com.br/noticias/28568/cinquentenario-de-%C2%93feira-de-santana%C2%94-de-rollie-poppino.html
[3] http://oliveiradimas.blogspot.com/2018/03/tese-de-doutorado-de-rollie-e-poppino.html
[4] Além de Rollie Poppino, as pesquisas se iniciaram com outros estudos como os de Harry Hutchinson, Marvin Harris, Bem Zimmerman, como convidados externos do programa que ficou conhecido como “Projeto Colúmbia”. Há vários estudos sobre o tema, especialmente na Universidade do Estado da Bahia, contando com o suporte do Museu Pedagógico Padre Palmeira, através de projeto específico de criação de uma memória sobre o Programa de Estudos Sociais Estado da Bahia.
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