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André Pomponet
terça-feira, 7 de julho de 2020 / Publicado em Colunistas, Home

Os bêbados da esquina e o “Prelúdio da Cachaça”

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Sempre vejo uns bêbados sob a sombra redonda de uma árvore numa esquina próxima. Aparecem no começo da manhã e sentam-se no meio-fio, resguardando-se do calor. Lá, espicham as pernas e o olhar para a rua deserta e poeirenta. Com o sol a pino, desaparecem, para ressurgir na manhã seguinte. As persistentes garoas de junho afastaram-nos: a copa da árvore, baixa, protege pouco das gotas intermitentes. E uma umidade densa, pegajosa, torna o piso insalubre. Naqueles dias, a poeira e a garoa mesclaram-se, assumindo uma consistência pastosa, que ajudou a tangê-los.

São inquietos: levantam, caminham até a esquina, às vezes atravessam a rua, num passo ébrio sobre as pedras ásperas do calçamento. Daqui intuo as camisas rotas, desbotadas, as calças encardidas, as sandálias tortas. O que vejo com clareza são os gestos – enfáticos, teatrais, exagerados – que ajudam a dimensionar o grau de embriaguez. Em tempos de pandemia desdenham as máscaras, acessório inútil.

Não repousam naquela esquina que conduz ao coração da Queimadinha à toa: estão sempre abastecidos, recipiente de aguardente descansando junto ao meio-fio sob a árvore. Às vezes, um deles desenrosca a tampa e, com um gesto espalhafatoso, entorna uma dose caprichada. Nas árvores próximas, os pássaros cantam. No criativo vocabulário do baiano, aquelas bojudas garrafinhas plásticas têm dois irreverentes apelidos: “bombinha” ou “granada”.

Aonde arranjam dinheiro para essa despesa frequente? As atentas observações ao longo da pandemia trouxeram respostas: alguns recolhem material reciclável – lata, papelão, vidro – e o vendem num depósito nas imediações. Um deles, troncho pelas renitentes jornadas alcoólicas, arrasta atrás de si um carrinho metálico, no qual abriga o papelão. Vasculha as cercanias atento no exercício do seu ofício. Só relaxa quando se dá folga, acariciando então sua “bombinha”.

Naquela embriaguez constante, assumida e ostensiva, contrariam a sentença do delicioso livro “Prelúdio da Cachaça”, do antropólogo e folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo: “Atenda-se que o brasileiro é devoto da cachaça, mas não é cachaceiro”. Isso era verdade lá no século XIX, conforme a versão sustentada por Cascudo, amparada em observações de viajantes contumazes como Augusto de Saint-Hilaire, George Gardner e Wied-Neuwied. Este último, a propósito, foi enfático num comentário: “Sóbrios como todos os brasileiros”.

Convergem, porém, quando se considera a cachaça bebida de cabra. Quem é cabra? O próprio Câmara Cascudo elucida: “A poesia anônima e popular não indica o uso da cachaça ao branco (…) e ao negro brasileiros, mas sim ao Cabra, vagueando englobadora de mestiços, de várias procedências”. Examino os devotos da caninha e enxergo sintonia com a poesia popular: o magote é de pardos, à exceção de um branco encardido pela poeira daquela esquina.

“Prelúdio da Cachaça” – etnologia, história e sociologia da aguardente no Brasil, conforme o solene subtítulo – investiga os primórdios da produção da cachaça no país, a partir de uma minuciosa investigação bibliográfica. Até na África – Moçambique, Angola, Guiné-Bissau – Cascudo foi investigar o tema, a origem da expressão cachaça. Obviamente, incursiona também pelos aspectos sociológicos e culturais, num texto que flui, prazeroso. Faz tempo que foi lançado: em maio de 1967.

Nesses meses aziagos, reapresentei-me ao livro. Comprei-o no inverno de 2007, durante um evento acadêmico lá em Londrina, no Paraná. Fazia frio, caía uma garoa finíssima, quase imperceptível, mas fui folheá-lo numa belíssima alameda ladeada por pinheiros, no campus da Universidade Estadual de Londrina. Aquela aquisição foi valiosa, rendeu um artigo que apresentei, dois anos depois, no Centro de Convenções de Havana, num congresso internacional. Bem no meio daquela crise econômica que atiçou a esquerda mundo afora e em Cuba também.

Hoje o “Prelúdio da Cachaça” ajuda a entender a disposição ancestral, irresistível, famélica, para a aguardente, a cachaça, a cana, a caninha, dos intrépidos bebedores da esquina. Nem temem a Covid-19, naquele estado de permanente anestesia mental. Enquadram-se na categoria dos folclóricos bêbados de bairro, tão comuns aqui na Feira de Santana.

É que nos faltam os bêbados de centro da cidade, porque o centro feirense é despovoado, quase deserto de vida fora dos horários comerciais…

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André Pomponet
André Pomponet
Economista pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2002), mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (2012), exerce o jornalismo desde 1995, quando ingressou no extinto jornal Feira Hoje. Posteriormente, atuou em outros órgãos de comunicação e foi Chefe de Redação da Assessoria de Comunicação Social da Câmara Municipal de Feira de Santana.É colunista do Blog da Feira.
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