Minha terra não é moça, minha terra é menino, que atira badogue, que mata mocó, que arma arapuca e sabe aboiar” (Eurico Alves Boaventura)
“ A carreta de Oscar grande como a rua” Cine Íris e a certeza de ter nascido antes” (Iderval Miranda)
“Você pode, em Feira, recitar versos logo de manhã e não parecer pedante. Você diz: parem de jogar cadáveres na minha porta.” (Ederval Fernandes)
Nascida e criada nessa terra me sinto uma tabaroa de Feira com todo orgulho e gosto de reafirmar essa filiação por outras terras por onde vou, sempre com a passagem de volta marcada. Como boa feirense, tenho o hábito/costume ou até vício de “bater perna na rua”, como os franceses dizem, sou uma flaneur. Para quem não é baiano, ir à rua significa ir ao centro da cidade, parte viva e pulsante de toda urbe. O motivo pouco importa, desde a compra prosaica de um presente até a resolução de um problema burocrático, o prazer é andar pelo centro vendo as novidades, parando em carrinhos de frutas, comendo amendoim ou milho assado, apreciando o corre-corre das pessoas, ouvindo retalhos de conversa e imaginando suas histórias de vida, escolhendo bugigangas que à primeira vista parecem essenciais.
Gosto disso desde criança. Pela mão de minha mãe, íamos comprar tecido na Violeta, aviamentos no Armarinho Marta, pão na Padaria da Fé, café e fubá no Tabajara, bijuterias em Zé do Fusca. Recordo do encantamento quando entrei pela primeira vez nas Lojas Brasileiras, meu primeiro Shopping, com aquele mundo de doces a granel, ou o frio na barriga ao subir as escadas rolantes das Pernambucanas. Quando era necessário íamos sacar algum dinheiro na ASPEB, da poupança que minha fazia com os seus caixas e trocos de feira, e íamos comprar roupas na Sheila ou sapatos na Bezerra e Santana sempre no Natal ou São João, essa última muito chic, fazia sorteios de pipocar a bola, uma vez ganhei uma Sandália Karatê. Quando não tínhamos a carona de meu pai, íamos no ônibus da Autossel. O ápice desses bordejos era merendar um coco espumante no Predileto ou o coroamento de um almoço no Boiadeiro. E essa redondeza era toda beleza, havia ali no início da Sales Barbosa um pipoqueiro e um freezer da Kibon, além de um jardim com bancos para tomar nosso sorvete confortavelmente.
Eu estudei no primário no Colégio Dalle Nogare, do hoje meu amigo e colega de UEFS Humberto Oliveira, que funcionava em um sobrado em frente à Praça do Nordestino, bem no burburinho do centro, então comecei a dar minhas escapulidas para ver a rua bem criança, descobri ali pertinho uma banca de revistas, Sadel, nome em razão de funcionar no passeio dessa loja, ainda hoje de pé, e uma loja de discos, a Só Discos, volta e meia eu corria lá rapidinho na hora da saída. Ainda lembro-me de uns móveis de bonecas, miniaturas de uma mobília, que eram vendidos na esquina da Marechal com a praça da Bandeira, no passeio onde funcionava o Banco Bamerindus (O tempo passa, o tempo voa), tão lindas que ainda guardo nas gavetas da memória o cheiro de madeira daquela minha primeira casinha.
Já adolescente, de “cangote grosso e ferrado limpo” como dizia minha vó Lili, comecei a ir para rua sozinha e não parei mais. Eu me transformei em uma espécie de “quebra-faca” da família, tudo que era preciso fazer na rua, “manda Alana que ela gosta”, “manda Alana que ela sabe achar”, cargo que ainda ocupo na medida do possível da vida adulta. Recordo-me da alegria de minhas compras do material escolar na Nossa Papelaria ou na Livraria Dom Pedro, do simpaticíssimo Sr. Amadeu do Banco do Brasil, que recebia pessoalmente seus clientes, levava na porta e chamava o táxi se fosse preciso. A Ottan Center e CF Carvalho Magazine era tão lindas, lojas de departamentos by Princesa do Sertão, com suas sessões diversificadas e vendedoras muito elegantes. E havia o Íris e o Timbira onde aprendi a amar o cinema nas matinês com gosto de Mentex e bala Kids. Depois descobri a Galeria Carmac que tinha uma lanchonete maravilhosa na esquina e quando veio a Luciana Center, o Arnold Silva e o Pedro Falcão foi a glória, até hoje quando passo por eles não resisto a cruzá-los, o máximo em matéria de cortar caminho vendo vitrine bonita no percurso. O Pedro virou Drogasil, nesse processo bizarro de farmacificação de nossa terra.
Dessa fase, final dos anos 80 comecinho dos 90, também guardo boas lembranças dos domingos. Eu e minha turma do Colégio Nobre com nosso cabelos de Chitãozinho e Chororó e calças bag, de tardinha íamos para a Gelateria Italiana, ali ao lado do Colégio São Francisco, hoje Safra. O legal era tomar sorvete e depois ficar na porta resenhando e paquerando, às vezes atravessávamos a rua para um sanduíche no Gauchão que ficava ali no meio ou para comer uma fatia de pizza na lanchonete do Malibu Shopping, hoje Shopping das Fábricas. Enfim, o verbo dos domingos era “Getuliar” e quando era perto da Micareta então, rolava por ali o que se chamava de Grito de Micareta e na Micareta mesmo existia a rivalidade dos bailes Tênis x Cajueiro, um mais popular, um mais elitizado. E em setembro era a Expofeira que agitava nossa cidade, botar bota e muita banca de fazendeiro sem nunca ter sido e ir para o Parque de Exposição era o máximo, quem não lembra do locutor de voz empostada: Fazendas Bahia, Fazendas Pau da Rola…
A menina cresceu, ficou sabendo que passou no vestibular para Letras pela Rádio Antares e pelo jornal Feira Hoje, virou professora, virou esposa de um comerciante, filho de árabes que por aqui chegaram e ficaram como muitos outros imigrantes que nossa terra acolhe, virou mãe de Miguel, mas ainda guarda essa menina que um dia se perdeu no centro da cidade e foi localizada numa barraquinha de doces na porta da Violeta batendo altos papos com os fregueses e não entendeu o desespero de seu pai e um monte de gente que a procurava, ela só estava dando umas voltas…
Praticamente de tudo que falei aqui pouca coisa resta de concreto nessa Feira de hoje, mas ainda quando vou para rua (um dos meus piores martírios do isolamento social, há quase seis meses sem uma incursão na Sales Barbosa) essas memórias me invadem junto com aquele cheiro de coco queimado com rapadura que era vendido ali na Bernardino Bahia ou do gosto do sorvete da Princesinha, das seriguelas da Festa da Kalilândia e da maçã do amor da Festa da Matriz onde passei muito mal um dia por medo de Monga. Dentro de uma cidade cabem muitas cidades e dentro de nossas memórias cabem muitos mundos, não vejo a hora de ouvir de novo Chip Tim, Oi, Claro, Vivo, Cartão, Senhora?, Dentista?, Empréstimo?, Capinha, película? Olha a “Acelora”… Essa é a minha Feira e sei que cada um tem a sua…Eurico Alves, Godofredo Filho, Joaquim Gouveia, Hugo Navarro, Iderval Miranda, Ederval Fernandes, Beto Pitombo, Carlos Pita, Zé Coió, Raymundo Luiz, Adilson Simas, Zé Maria, Antônio de Josino, Clovis Ramaiana, Augusto Spínola, Jânio Rego, Cintia Portugal, e você de umbigo enterrado ou não…
Alana de O. Freitas El Fahl, professora Titular de Literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana e tabaroa de Feira de Santana com umbigo enterrado com muito orgulho!
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