Para Pablício Pablues
Estou trabalhando em um artigo sobre arcos musicais africanos, para o qual tenho analisado um denso Dicionário de um musicólogo português. Em uma dessas noites de atividade com os verbetes do referido Dicionário, neste fatídico final de ano pandêmico, não me encontrava com muito ânimo para produção acadêmica, quando fui convidado por minha companheira a observar no menu da Netflix um filme com título bastante sugestivo: “A voz suprema do Blues”. O tema do filme logo me chamou atenção, pois tenho grande apreço pelo Blues, essa memória sonora da diáspora africana. Logo em seguida ao observar entre o elenco os nomes de Viola Davis e Chadwick Boseman, não ficaram mais dúvidas que para aquela noite, eu já havia conseguido uma excelente agenda: assistir A voz suprema do Blues!
Não sou chegado a comentar os filmes que assisto, pois não tenho habilidade para tal, mas a minha satisfação em tê-lo visto foi tamanha que decidi compartilhar um pouco do que vi. Destaquei então a grande aula que tive naquela noite sobre o racismo nos bastidores do mercado fonográfico da música negra norte-americana no início do século XX.
O filme se desenrola praticamente no interior de um estúdio durante a gravação de Ma Rainey em uma calorosa tarde de Chicago dos anos 1920. Interpretada por Viola Davis, Ma Rainey é a personagem principal do filme, pois o mesmo foi baseado em uma peça teatral que retrata um rápido momento da história da cantora, voz feminina que reinava de forma “suprema” no universo do Blues norte-americano no período citado. Ma Rainey foi uma figura irreverente e atenta às questões raciais que marcaram as relações de trabalho entre os empresários brancos e os artistas negros e negras estadonudenses do período. Durante a gravação (pano de fundo do irredo), não foram poucas as vezes que ela se desentendeu com seus contratantes e ao ser questionada pelos músicos de sua banda (todos negros), ela acertadamente replicava: “eles só querem a minha voz!”. Ela tinha consciência da exploração dos artistas negros e negras pelos produtores brancos.
Além de denunciar o racismo nos bastidores do mercado da música, a personagem Ma Rainey evidencia outro aspecto das relações na comunidade artística que merecia um pouco mais de ênfase: a relação homoafetiva entre mulheres negras na história do Blues. De forma discreta, a narrativa revela a relação amorosa de Rainey com uma jovem que lhe acompanha no estúdio de gravação, mas este aspecto não tem destaque mais evidente na narrativa, infelizmente. A atuação de Viola Davis, interpretando Ma Rainey é gigante, mas não estrelou sozinha. Me provocou suspiros e arrepios a atuação de Chadwick Boseman, ao interpretar o inquieto Levee, trompetista da banda de Rainey, que agigantou o filme com seus monólogos, revelando as consequências cruéis do racismo em sua vida.
Levee, era um músico talentoso que lutava pelo reconhecimento de sua produção autoral e por conta disso tensionava sua relação com Ma Rainey e com os próprios produtores. Entretanto, o que lhe permitiu roubar grande parte das cenas do filme foram seus relatos acerca da sua experiência com o racismo que violentou sua família durante toda sua infância no Mississipe, região de atuação da Ku Kluz Klan, sociedade supremacista branca que pregava o ódio racial e a violência extrema.
Em um dos monólogos, Levee/Boseman relata como sua mãe fora estuprada e seu pai assassinado por homens brancos e de como isso marcou a sua vida e sua compreensão sobre justiça e fé cristã. Em outro monólogo, o qual lhe fez roubar o protagonismo do filme, ele questiona a viabilidade de Deus (cristão) para fazer justiça em nome das pessoas negras vítimas dos requintes de crueldade dos brancos racistas e cristãos.
Além de Levee e Rainey, cada músico em suas falas nos bastidores da gravação revelava um pouco do que era ser negro/negra nos Estados Unidos da época e como a experiência com o racismo marcou as suas vidas e antecipou a morte de alguns, o que ficou evidente na última cena do filme, quando Levee apunhala um dos músicos pelo fato de não dispensar a atenção requerida pelo trompetista enquanto fazia seus relatos com um punhado de alucinações, resultantes das lesões causadas pelo racismo.
Além de ser um filme cheio de emoção por conta da homenagem postuma a Bosema, o qual fora arrancado da vida por um irreversível câncer antes do lançamento do filme, A voz suprema do Blues, também revelou para mim uma das grandes vozes da história desse gênero musical (Ma Rainey). Acentuou mais ainda a compreensão acerca da letalidade do racismo que não se restringiu às populações afro-americanas dos Estados Unidos dos anos 1920. O racismo tem vencido em diferentes espaços e a música como o Blues, tem sido desde então uma voz de resistência e estímulo da luta antirracista, seja nos Estados Unidos, no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Por esta razão, dedico estas reflexões um tanto quanto apressadas ao artista baiano que me apresentou o Blues, Pablício Pablues e seus comparsas do Clube de Patifes!