Há alguns anos, o poeta Kitute Coelho deu um livro de presente a Doutor Deraldo, em Irará.
O livro apresenta áreas de conservação ambiental da Bahia, um trabalho de arte gráfica com fotografias de Rui Rezende e Sérgio Cedraz e uma narrativa em cordel de autoria do poeta iraraense, daí também o porquê do presente, além da estima coletiva de que goza Doutor Deraldo em Irará.
Passa o tempo.
Esta semana Kitute recebeu uma correspondência de Doutor Deraldo. Um manuscrito, do próprio punho, agradecendo aquele presente de anos atrás, em um curto e singelo bilhete em versos rimados.
O poeta vibrou: “um troféu que dá vontade de tatuar”. E comemorou publicando o bilhete (foto)nas redes sociais com a legenda:
“Com essa caligrafia que amo desde criança e Irará reconhece. Um fofo, um gentleman, um QUERIDÃO. Mistura de presente com troféu que dá vontade de tatuar. Gratidão e devoção sempre amigo Dr. Deraldo!!!”
Tem toda razão o poeta de estar orgulhoso e exibindo como troféu.
O médico Deraldo Portela é uma figura tão respeitada e querida no município de Irará (a 50km de Feira de Santana) que a única serra existente nas redondezas é conhecida pelo seu nome, Serra de Doutor Deraldo.
Aos 94 anos de idade, doutor Deraldo formou-se na antiga Escola de Medicina da Universidade Federal da Bahia em Salvador e veio clinicar em Irará, de onde nunca mais saiu e onde continua até hoje. Simples assim. E lúcido, como comprova esse manuscrito que Kitute exibe com merecido orgulho.
Aliás, simplicidade é a grande virtude que marca esse homem sempre sereno, comedido e muito religioso.Deraldo Portela é o que se pode chamar de católico fervoroso.
Quando era jovem estudante de medicina em Salvador encantou-se tanto com a vida beneditina, os cantos gregorianos, os rituais e a filosofia da ordem de São Bento que tornou-se um oblato.
Ou seja, tornou-se um beneditino secular, não veste batinas, não está no mosteiro mas segue regras ditadas pela simplicidade da vida monástica: leitura assídua, meditação, estudo e escuta da sagrada escritura.
Certamente essa formação o tornou o médico popular, caridoso, querido por não ter os rompantes e vaidades historicamente atribuídas ao pedantismo comum na profissão médica.
Foi assim que ele construiu admirações devotas e é personagem de histórias de caridades que a imaginação e a fé engrandecem. Um doutor diferente.
Veio a medicina moderna e não o tirou do consultório vizinho à sua casa que foi do pai dele e da qual ele também nunca saiu. É um conservador na acepção mais humilde do termo.
Até bem pouco tempo antes da pandemia ainda atendia no consultório. No dia de uma dessas fotos eu o conheci e estive lá. Haviam pacientes na sala de espera.
Pois bem, quando a serra ganhou o nome de Doutor Deraldo ele já era popular e era o Prefeito do Município naquela época, por volta do ano de 1966.
Calma, você que está balançando a cabeça e se perguntando político? como pode? um homem assim…!? (com todo respeito aos bons políticos, que os há…) calma, explico como se deu esse “acidente”:
Doutor Deraldo foi prefeito numa circunstância da vida política de Irará das mais interessantes nas histórias dos municípios grandes que vão se tornando pequenos pelas emancipações dos distritos que tornam-se cidades.
Um exemplo hipotético: se de repente Feira de Santana deixasse de possuir os oito distritos do seu território e passasse a ser apenas a cidade da Feira todo o município.
Pois com Irará foi mais ou menos assim. Foi quando surgiram Água Fria, Santanópolis…E Irará esvaziou-se e ninguém mais quis ser prefeito da cidade que além disso, como em quase todo o país, vivia tempos difíceis, com os militares e a Ditadura, os políticos em guerra, divididos, a população atônita… então, quem chamar para dar socorro a Irará enferma e moribunda? para protagonizar a paz entre as correntes exaltadas? Ele mesmo, Doutor Deraldo.
E o médico foi candidato único a Prefeito de Irará. Uniram-se todos os grupos políticos e o apoiaram. Uma unanimidade.
Foi nesse tempo que a serra ganhou seu nome. Mas também não foi por decreto ou porque ele fosse o prefeito.
Há uma outra história, muito interessante, que envolve a busca por um tesouro para as populações sertanejas: a água. Um dia a contaremos.
Poema-bilhete
Kitute meu bom amigo/já estou sem quifazer/ Só assim eu tive tempo/para lhe agradecer
A oferta de um livro/ sobre as coisas da Bahia/ Que merecem a gente ver
Desculpe pela demora/ eu só pude ler agora/
O livro é uma beleza/e fiquei muito contente/ Pela parte que lhe coube/na feitura do presente/
Seus versos contando histórias/para todo mundo ler
Mas de todos os seus versos/teve alguns que eu encontrei/ escritos com sua letra, bem no começo do livro/foi deles que mais gostei
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Entre tantas matérias interessantes, aqui no Blog da Feira, “Dr. Deraldo/poeta Kitute/ bilhete de Irará” foi um exagero de bom.Como admirador do trabalho do Dr Deraldo, fico no aguardo de novas histórias (com H) inclusive sobre a sua ligação com a cultura, através da Filarmônica 25 de Dezembro.