Aos 75 anos, morreu no começo da noite deste sábado, 3 de abril, a médica psiquiatra sergipana e poeta Ilma Fontes. Não foi de Covid-19.
Desde o ano passado, Ilma Fontes descobriu-se portadora de um tipo raro de câncer de pele. Esteve internada num hospital de Aracaju por alguns dias, mas preferiu enfrentar a doença em home care, onde sucumbiu.
Ela estava muito abatida. “Ilma enfrentou sofrimento demais e hoje descansou. Estava muito debilitada e muito sofrida. Não teve nada a ver com Covid-19. Foi o câncer mesmo. O quadro dela era gravíssimo. As morfinas não faziam mais efeito”, disse o amigo Guga Viana, muito sentido.
Ilma Fontes não foi só poeta. Foi cineasta, agitadora cultural, médica legista. Jornalista mantenedora do jornal “O Capital”, que ela dizia que era de resistência ao ordinário.
Como poeta, Ilma Fontes era de uma fina concepção lírica moderna e de uma extremada ironia. Ligada ao movimento da poesia concreta ou marginal dos anos 70, no qual se inseriam de Cacaso a Paulo Leminski, passando pelo seu conterrâneo Mário Jorge Menezes, Ilma foi negligente com publicações de sua produção.
Só na década passada ela reuniu parte de sua obra num livro onde consta o iconoclasta poema “Confidência de Aracajuana”, no qual faz uma dura crítica à sergipanidade a partir do poema quase homônimo ao de Carlos Drummond de Andrade, “Confidência do Itabirano”.
“Aracaju é apenas um cu / mas como dói”, dizem os dois últimos versos do poema dela, em interlocução-paródia com os dois últimos versos do poema de Drummond – “Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói”. Veja o poema inteiro de Ilma.
Confidência de Aracajuana
Da série Pornografando Drummond
Há anos morri em Aracaju,
principalmente no dia em que nasci.
Por isso sou gay, orgástica: de nuvem.
Dois por cento de cajuína na alma
dois por cento de fel nas calçadas
e esse alegramento do que na vida é
pluralidade e solidão.
A vontade de amar, que me impulsiona
o trabalho, vem de Aracaju, de suas noites
azuis onde sobram mulheres e horizontes.
O hábito de mexericar, que tanto dilacera,
é amarga herança aracajuína.
De Aracaju levei poucas prendas
que posso oferecer: um búzio sujo
de petróleo, que trago no peito
um pensar desembestado como um defeito
essa falta de jeito, nenhum sofá
nem sala de estar, nada em volta.
Tive mesas, tive cadeiras, tive divãs!
Hoje, não sou funcionária pública. Nem
médica psiquiatra. Jornalista por ofício
com vício de cineasta, viro
o videócio na videocidade. Saudade.
Aracaju é apenas um cu
– mas como dói