Tenho uma série de crônicas, que gosto bastante, homenageando a amigos e familiares, geralmente por ocasião de seus aniversários. Neste texto, apresento aos meus poucos, mas valorosos leitores, um personagem muito, muito interessante, o Ivan Paraíba, figura por demais conhecida na cidade. Nascido no Cruzeiro, periferia de Campina Grande, foi batizado em uma igreja do bairro vizinho Bodocongó, que tornou-se famoso e imortalizado pela voz do legendário Jackson do Pandeiro, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. O lugar assim está retratado, em um de seus sambas:
“Eu fui feliz lá no Bodocongó…
Com meu barquinho, de um remo só…
Quando era lua, com meu bem, remava a toa..
Ai, ai, ai que vida boa lá no meu Bodocongó!”
Chegou adolescente, em Feira de Santana, aos 16 anos de idade, exatamente em 26 de agosto de 1977. A mãe, dona Josefa, mais conhecida por Nita, já estava aqui desde o ano anterior, morando no bairro Baraunas e convivendo com o padrasto dele. Ali Ivan passou toda a juventude. Logo ganhou o “sobrenome” Paraíba, o que não ocorreu simplesmente por ele ter nascido naquele Estado. A invenção partiu do falecido radialista e amigo Erivaldo Cerqueira. “Tinha uns oito ‘Ivans’ nas Baraúnas”, relembra. Para diferenciar dos outros, o “Bigurrilho” botou o Paraíba como apelido e assim ficou.
Nosso amigo é casado há 42 anos, com dona Neide, servidora do Hospital Geral Clériston Andrade há mais de três décadas. Ela é muito reservada, exatamente o oposto do espalhafatoso marido. Seria justo condecorá-la, pois é heroína, não vou explicar porquê. O casal teve quatro filhos: o primogênito Douglas, a primeira das mulheres, Ivana, Ivanessa e Ítala.
Douglas trabalha na área de tecnologia; Ivana, jornalista, é funcionária do setor administrativo de uma indústria; Ivanessa cumpre missão profissional das mais interessantes, animadora infantil. Figura muito disputada para encantar as crianças em festas de aniversário e eu recomendo seu trabalho, pois é maravilhosa. Ítala, a mais jovem, vive em Portugal com o marido há mais de uma década. Portanto, todos muito bem encaminhados. A alegria da família está completa, com os netinhos Samuel (filho de Ivana) e o recém-nascido Nícolas (de Douglas), paixões dos avós.
Conheci Ivan motorista da Rádio Subaé, meados da década de 1980. Antes, ele havia trabalhado na TV Subaé, na dupla função de motorista e iluminador. Se gaba de ter “feito reportagem” por lá. Na verdade, apenas segurou microfone para o entrevistado falar. Deixa quieto. “Miro, a gente começou amizade no futebol”, relembra. De fato, jogamos no time daquela emissora, que fazia parte da rede de comunicação pertencente ao Grupo Modesto Cerqueira, integrado ainda pela TV Subaé, Jornal Feira Hoje e FM Nordeste. O time de pernas de pau era montado por Rogério Santana. Eu trabalhava nesta época no jornal e também na rádio AM.
Na “1080”, Ivan dirigiu carro de “VHF” (reportagem volante) para os repórteres Eliel Paiva, Jorge Teles, Aldo Matos e Erivaldo Cerqueira. “Todos excelentes”. Mas, lhe pergunto: e o mais popular, quem era? ; “O nego Erivaldo”, responde de pronto. “Tinha dificuldade para ler até o que ele mesmo escrevia, mas improvisava tudo e fazia sucesso assim mesmo. Era um bicho”, elogia.
É normal o amante do futebol ter duas paixões. Ivan tem três. O Treze era seu time da infância e início de adolescência. “Saía de uma distância como das Baraúnas ao Tomba, a pé, para ver o time treinar”. O Botafogo do Rio, aprendeu a gostar depois de ver um jogo das duas equipes no Presidente Vargas, estádio trezeano. Chamou-lhe a atenção que as camisas tem as mesmas cores (preto e branco).
Ao chegar em Feira, simpatizou com o Flu, mas assistindo no Jóia um clássico com o Vitória, seu coração bateu mais forte pelo rubro-negro. “Nunca pensei na vida torcer por um vermelho e preto”, surpreende-se, pois são as cores do Campinense, arquirival do Treze. Pela ordem, ele classifica o Treze em primeiro lugar e o Vitória em segundo. Lamenta não ter convencido nenhum dos quatro filhos a torcer por um desses times. “Não gostam de futebol”. Acho que eles escaparam de uma enrascada, isto sim.
Além do futebol, a música é a outra grande diversão dele. É um apaixonado, assim como eu, pelas antigas canções românticas nacionais, do estilo clássico de Nelson Gonçalves e Agnaldo Timóteo ao pop de José Augusto, Fernando Mendes e Wanderley Cardoso. É amante, também, claro, como bom paraibano, do forró (pé de serra autêntico. Jackson e Gonzagão, seus ídolos. Evidentemente, não vamos aqui ser indiscretos, revelando outros entretenimentos de sua predileção, a exemplo da sagrada (lá ele!) água que pássaro não bebe.
Sempre disponível aos amigos, já me me fez companhia em viagem a Queimadas do Curral, Valente, em visita à minha mãe. Aproximadamente seis horas de estrada, ida e volta. Curtimos, durante todo o percurso, aquelas lindas canções dos anos 60, 70 e 80. Aos berros cantamos as baladas de Jovem Guarda dos Fevers, Renato & seus Blue Caps e do rei Roberto Carlos. Os clássicos hits internacionais também rolaram, é claro. Afinal, eu já sabia, ele era um cara que, como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones. Embolamos a língua e – felizmente ninguém por perto – soltamos a voz.
Pé de valsa, Ivan é figura carimbada em espaços como Ali-Babá, Cowboy do Asfalto e Chão de Estrelas. Não perde por nada uma boa seresta e se for com o Violão de Ouro então, só sai depois do último acorde e após bailar a noite inteira, camisa completamente encharcada de suor. Enquanto esteve viva, sua parceira de salão sempre foi a mãe dele, dona Nita. Quando os dois, mãos dadas, esguios, desfilavam suas habilidades ao som de “El dia em que mi quieras”, não adiantava uma outra dama, admirada pela harmonia do seu passo, convida-lo para “uma parte”. Ali, eles eram exclusivos um do outro. Viveram inseparáveis, até que Deus a levou.
Quando se está ao lado de Ivan Paraíba, nunca falta um bom papo. Não por acaso ganhou no rádio outro apelido, “Bocão”. O homem sempre tem um assunto na ponta da língua. Fala muito e de tudo. Eu disse “de tudo”, não “de todos”. Impossível não se contagiar pelo seu sorriso maravilhosamente escandaloso. Ele ao lado, é alegria na certa. Não se vê este homem de mal humor. Tanto que, não raro, a prótese dentária (a popular chapa) não resiste a tanta intensidade e muda de posição, o que ele resolve rapidamente. Com seguidos movimentos de língua a olhos vistos, devolve o objeto pro lugar.
Caminhoneiro, taxista, motorista de ônibus, motorista de rádio; chofer do deputado e depois prefeito Tarcísio Pimenta; entregador de quentinhas, office-boy e tudo o mais no antigo restaurante do radialista Wilson Passos. Ainda ao volante, atuou como motorista terceirizado dos Correios por nove anos – ele diz ter conhecido 250 cidades, mas vamos reduzir esse número à metade, pois é um exagerado.
Foi também operador de externa (profissional que ‘puxava’ fios e ajudava a área técnica nos estádios, durante as transmissões de futebol). Trabalhou muito, nos estádios da vida, carregando pesados “rolos” de 100 metros de cabo, antes de surgir o microfone conectado à base por antenas. Era a solução para o repórter sair do campo e chegar aos vestiários, onde faria as entrevistas de fim de jogo. Nos últimos anos, tem trabalhado para a Prefeitura de Feira, entregando água de caminhão na zona rural, que ele já conhece cada metro como a palma da mão. Nosso Ivan já fez muita coisa nesta vida.
Na Micareta e Expofeira, enquanto estive secretário de Comunicação da cidade por quase oito anos, solicitei da Secretaria de Serviços Públicos que o cedesse para completar nossa equipe nesses grandes eventos. O paraibano era pau pra toda obra. Terminava de levar nossos jornalistas em casa às vezes às 4 da madrugada e estava de pé às 10, para resolver comigo problemas da grande cobertura.
Precisei fazer uma mudança de casa, no início dos anos 90. Deixei residência temporária no conjunto Feira IV para inaugurar uma outra recém-adquirida no bairro Estação Nova, ao término de reforma. Wilson Passos, meu amigo-irmão, tinha uma Fiorino. Hoje ele anda de Toro, um lindo carro, pelas ruas de Feira, graças a Deus e mérito do seu trabalho profissional. Mas naquele tempo, o veículo dele era não era bem um carro… algo próximo. Ivan, seu faz tudo, em um restaurante.
Para economizar, em vez de fretar um caminhão resolvi pedir a Wilson aquela “sardinha” (ops! torcedores do Bahia, não levem a mal, nada a ver com vocês). Ele não apenas a cedeu, mas também disponibilizou seu motorista. Ivan torceu a sombrancelha, achando que aquilo seria uma loucura. E era! Afinal, levar a mobília de uma casa na carroceria de uma Fiorino velha, realmente, não tinha nada a ver. Coisa de gente sem juízo (no caso, eu mesmo). Mas, lá fomos nós para o desafio. Resultado: Paraíba, que não mente, mas como já disse, exagera, diz ter feito 20 viagens carregando bugigangas. Nas minhas contas, foram umas 15. De qualquer forma, ele passou sufoco, até porque além de dirigir, fez as honras de carregador.
Nesta Quinta-Feira Santa, Ivan me liga pela manhã. “Miro, você está em casa?” Eu lhe disse sim. Confesso que, nesses tempos que vivemos, fiquei preocupado em princípio, imaginando que o amigo de tantas jornadas estivesse enfrentando algum problema de saúde. “Estou passando aí em 10 minutos para lhe entregar um negócio”, completou. Mais aliviado, aguardei tocar a campainha. Como mora aqui perto, chegou realmente no prazo – aliás, pontualidade é uma das virtudes dele. Abro a porta e o vejo vestido em uma conservada camisa do Vitória do tempo em que a publicidade do clube era o Pálio, uns 20 anos atrás.
Apenas o rosto pra dentro de casa, corpo colado ao portão, ele estende a mão fechada (clássica forma de cumprimento desses infelizes tempos) para Francisco, meu menino de cinco anos, que não o reconhece por causa da máscara. O garoto olha pra mim e permanece como está, mão aberta, sem esboçar corresponder à saudação. Aceno a cabeça positivamente. Ele entende a autorização e, como sempre, dá um verdadeiro murro na mão de Ivan. É sua maneira de dizer “olá”, fazer o quê?
Com a outra mão, Ivan segura uma embalagem em papel de presente. O formato de garrafa me fez pensar que seria um “sangue de boi” ou, quem sabe, um “Cantina da Serra”, já que estamos em tempo de vinho. Ele recomenda: “segura com cuidado, tem um copinho aí na tampa”. Mudei então de palpite, deveria ser uma “Seleta”, com copo e tudo. Torci para que fosse esse destilado, é muito bom aperitivo.
“Minha filha sempre traz pra mim e lembrei de você, Miro, que deve gostar”, arrematou o velho, fiel e gentil amigo. Agradeci a lembrança. Não abri naquele momento, mas agucei a expectativa. “Opa, acho que me enganei”, imaginei (pobre de nós, humanos, com nossos pensamentos nem sempre nobres). Constataria depois que realmente era algo mais “requintado” do que as bebidas que especulei silenciosamente de início. Então, segurando a lembrança com o cuidado recomendado, puxei um papo com ele ali mesmo, no portão, pois não quis entrar.
Perguntei-lhe se já havia sido vacinado, de sacanagem, pois sei que não tem ainda 60 e tantos anos. “Como Miro, se fiz 60 agora dia 18?”, respondeu-me, acrescentando “tá longe ainda”. E o que fez para comemorar, quis saber. “Cozinhei uma panela de feijão preto, outra de feijão mulatinho. Conhecido que passava eu oferecia”. Único que mandou entrar foi “Morde Língua”, disse ele, fazendo aquele característico sinal com o dedo indicador em círculos ao lado do ouvido. Que o famoso radialista não leia este texto, pois pode dar o troco “no ar”. Ivan soltou o “veneno”, despediu-se com o tradicional “um cheiro, Miro”, entrou no carro rindo, como sempre, e voltou pra casa dele.
Carreguei minha garrafa, não sabia ainda do quê, para a cozinha. Abri a embalagem. Me deparei com um Gran Cruz, do Porto, safra 2006. Um luxo. Obrigado, Ivan, por brinde de tão bom gosto. Fosse um “Cantina”, brincadeira à parte, receberia com a mesma alegria, pois o valor está no gesto, não no conteúdo.
Como disse lá em cima, no início, gosto de homenagear amigos em data natalícia. Ivan resolve me visitar, traz uma lembrança tão marcante e ainda me dá notícia da boa nova, seu ingresso no clube dos sexagenários neste março, é inevitável a vontade de escrever essas mal traçadas. A crônica, longa, poderia ser maior, e o faria com todo o prazer, pra contar todas as nossas aventuras, o que só evito para não cansar minha dezena de leitores.
Obrigado, estimado amigo, pela visita e o despertar desta oportunidade, em que rememoramos momentos tão especiais. Sorte minha, que meus caminhos tenham se encontrado com os de alguém extremamente simples e ao mesmo tempo de energias tão boas. É certo que jamais esquecerei deste grande, amado e inesquecível irmão. Desejo-lhe vida longa e amizade eterna com seu inseparável, inesgotável, indefectível, impagável e contagiante sorriso.
Valdomiro Silva é jornalista, fundador do jornal ‘Tribuna Feirense’, ex-secretário de Comunicação da Prefeitura de Feira de Santana.
Gostei das reportagens que li principalmente a que mostra com finos detalhes sobre nosso amigo Ivan, colega de profissão na prefeitura de Feira de Santana.