Bola de couro era um artigo de luxo nos nossos babas que aconteciam dia sim, dia sim. Invariavelmente e muitas vezes de manhã, à tarde e à noite. Aliás, era artigo de luxo em qualquer jogo em Jaguara. Não faço ideia de quanto custava, mas sei que era cara o suficiente para ficar fora do alcance daquela turma que quase não tinha nem um tostão furado no bolso para comprar qualquer coisa, muito menos uma bola de couro, embora esta fosse uma diversão que valeria cada centavo, se a gente tivesse dinheiro para isso.
Se não tinha bola de couro, o mais comum era jogar com bola de borracha. As bolas Canarinho eram as mais baratas, mas tinham o “pequeno” inconveniente de serem leves demais. Era mais fácil pegar um boi à unha do que dominar aquelas bolas que saltavam ao menor sopro de vento. Além disso, como eram muito finas, da espessura de uma hóstia, não resistiam muito tempo às pedras pontiagudas que teimavam em brotar praticamente em todos os buracos da vila. Também era impossível jogar com as bolas Canarinho no campo “oficial” do lugarejo, uma improvisação enladeirada num pasto que era cercado com arame farpado. Bastava um chute um pouco mais forte para a bola furar e acabar a brincadeira.
Só restava a gente jogar com as bolas Chuveirinho ou Dente de Leite, que também eram de borracha, porém um pouco mais robustas e que pulavam bem menos. Era a melhor opção. Aliás, o melhor custo-benefício, pra usar a linguagem dos negócios que aquela garotada não fazia a menor ideia do que isso significava. A verdade é que poucos tinham condições de comprar uma bola melhor e geralmente eu era o dono da bola, o que me garantia o legítimo e inconteste direito de ser escalado em qualquer baba, mesmo aqueles formados por “homens feitos”.
Todo mundo queria mesmo era jogar com bola de couro, mas praticamente ninguém comprava porque estava a quilômetros de distância do nosso orçamento de pé rapados. Como a bola Canarinho era um objeto que tinha vida própria, o melhor mesmo era se contentar com as bolas Chuveirinho e Dente de Leite, que eram mais pesadas, não furavam com tanta facilidade e eram baratas. Mesmo mais baratas, o problema da grana curta continuava e isso terminou despertando em mim o que hoje seria chamado de empreendedorismo, mesmo meio fora dos padrões de negócio. Descobri que poderia ganhar dinheiro e ao mesmo tempo garantir a alegria da turma se fizesse rifa para sortear bolas. Bingo!
E tomei gosto pelo negócio. Além das bolas, passei a fazer outras rifas. Aproveitava o domingo da feira para vender bilhetes que davam direito a concorrer a garrafas de Cinzano, Martini e outras bebidas que despertassem o interesse dos meus novos clientes. Na segunda-feira, o público-alvo – mais uma vez usando a linguagem dos negócios – era o pessoal que retornava de Feira de Santana nos paus de arara e fazia uma parada na venda de Deca, em Jaguara, antes de seguir para suas casas na roça.
Nessa minha incursão no mundo dos negócios diversifiquei ainda mais e entrei no ramo dos congelados, se é que posso chamar assim. O que era feito pra consumo próprio, descobri que poderia render um troco. E aí passei a vender abafabanca, só que não era nenhuma “Brastemp”. Afinal, sorvete feito de Ki-Suco era quase como chupar gelo com açúcar. Nas primeiras lambidas só restavam o gelo e a língua pintada pelos corantes que imitavam sabores como groselha, framboesa, abacaxi…
Não demorou muito e precisei dar um upgrade (opa!) naquele produto tão fajuto. Lancei mão da maior especialista que poderia contar e aqueles produtos que mais pareciam feitos pelas “Organizações Tabajara” agora tinham a chancela de minha mãe. Dona Bernadete assumiu com toda propriedade a fabricação dos melhores abafabancas que já experimentei e a linha da produção ganhou sabores como baunilha, abacaxi, manga e – campeão de todos – coco. Ganhei a galera de cara e logo todo mundo procurava o abafabanca de dona Bernadete.
Pra turma mais jovem, ouvir falar em abafabanca deve soar bem estranho, acostumados que estão com os gelatos da vida. Mas tenham certeza que os abafabancas de dona Bernadete eram feitas no capricho e não chegavam pra quem queria. Além do sorvete ser muito bom, a linha de fabricação era tímida e não dava conta da procura. Afinal, tudo era feito num congelador de uma pequena geladeira Frigidaire no início dos anos 70 onde cabiam poucas formas de alumínio. Era pouco abafabanca para muito cliente. Então encontramos uma saída: em vez de fazer abafabanca, passamos a fabricar geladinho. O segredo era que não precisava esperar o geladinho congelar todo pra poder vender e, além disso, cabia bem mais saquinhos no pequeno congelador, sem contar que dava pra estocar nas caixas de isopor. Sorte dos clientes que podiam consumir mais aquela delícia que encheu de sabor a minha infância.
O negócio, apesar de muito pequeno, segurou muita onda nos apertos, de moeda em moeda. Cada saquinho plástico era selado manualmente, um a um, com o calor da luz das velas. Uma operação que poderia significar o nascimento de um homem de negócios serviu pra escrever mais algumas linhas nessa minha história de vida.
Ah, esse meu lado empreendedor aventureiro ficou adormecido, mas não esquecido.
Marcílio Costa é jornalista, gerente de Jornalismo da Tv. Subaé bem feira de Santana.