A Bahia tem dessas coisas: fica quieta em seu canto e quanto menos se espera nos revela seus encantos; e seu novo encantamento é a presença na literatura – onde já fomos grandes criadores e criaturas desde os tempos de Antônio Vieira e de Gregório de Mattos, passando por Cuíca de Santo Amaro e Antônio Short ou João Ubaldo Ribeiro e tantos outros admirados – de jornalistas que sempre foram reconhecidos pelo trabalho de alto nível fecundo e que decidiram colocar em tintas sobre o branco o seu trabalho literário. E nem foi surpresa para mim e muitos outros, que os trabalhos lançados viessem com o selo de qualidade que sempre caracterizam o fazer desses literatos que se insinuam, se revelam e se consagram.
Começo com o livro lançado pela escritora e jornalista Joana D’Arck que é um primor de leveza, de emoções, de textura. Uma tecedura fina como um tapete árabe, um crochê, um fuxico, fios de seda do velho Caminho da Seda, mágica urdidura. Um cuidar da linguagem cotidiana com esmero. Histórias tão bem contadas sobre sua memória e recordação alheia que até nos leva a fazer parte do seu universo tão particular quanto universal. Claro que o trabalho jornalístico dessa escritora sempre foi referencial. Tanto que não surpreende a qualidade da sua literatura, pois sendo diferente, mantém o primor. Cada crônica ou conto – seriam mesmo contos oníricos? Depoimento? Cantos tingidos? – é literatura de primeira qualidade.
São poucos aqueles escritores que conseguem transformar suas memórias, percepções, casos ou fatos em valor literário. Podemos citar Clarisse Lispector, Cora Coralina e Carolina Maria de Jesus, Isabel Allende. Ouso encaixar nesta relação que faz parte de uma plêiade não tão extensa o trabalho de Joana D’Arck. É necessário ler sua obra “Entrelinhas e Afetos”. Nele está tudo da alma. A lembrança do pretérito, o carinho, o amor, a família, as peças, as trepeças, um “causo” familiar. A mãe da autora sendo a figura central. O afeto. Os apertos. Dona Elza uma mulher que olhava para a frente, acima dos muros e chapadas. Um livro essencial. De uma escritora que se mostra impar logo de saída. No jargão futebolístico chegando e “jogando para contrato”.
Boêmio
E do nada me aparece. De surpresa e de com força chega outro escritor, jornalista consagrado, de texto reconhecido e admirado, um ser humano de amplo coração navegador e que nos coloca às mãos uma obra primorosa o seu “Aquele Jeito Baiano de Ser Boêmio”. Lá vem Otto Freitas, moço de ideias remoçadas que traduz e rememora os tempos de uma Bahia romântica, onde se podia andar na rua sem ser assaltado e sem sobressaltos. Olhar as estrelas e enxerga-las. Ouvir o ruído do silêncio. Abraçar sem medo.
O que falar (escrever ou delinear) da obra de Otto é algo difícil de se proferir sem cair no lugar comum. Ele é um excelente cronista, com aquele olhar de tomar conta, percepção fina, retenção memorial de poética trama. O livro nos emociona e faz viajar no tempo. O texto fácil corre solto e envolve e abraça. Livro para ler com uma boa cachaça para quem é de cachaça, de vinho para quem é de Baco, amigo ao lado. Nem vendo o tempo passar. E Otto fala dos seus amigos de “campanha” pelos bares da vida, pelas ruas, pelas coisas novidadeiras de uma cidade essencialmente boêmia. Da Bahia longe da capital. Das suas boas aventuras. Faz crônica como se fosse poesia e ele é bom de poesia. E Otto é naturalmente uma leveza de ser, como seu historiar. Seu trabalho literário é um carinho só. Envolve e embala. A literatura baiana agradece a Otto e a Joana. Esses escritores mostram que nem tudo se perdeu no tempo. E renovam o beletrismo que sempre nos pertenceu, nossa arte, moldura e espelho.
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