“Mal-encarada, fama de valentias, de pouco se abrir, de pouco se dar, Queimadinha. Inesperadamente, um gesto, uma aproximação, um sorriso, um mugir, um sinal de vida, uma concessão. (…) Conheceis o boi, assim é a Queimadinha, esmorecida, ruminante, pródiga às vezes, desconfiada quase sempre, calada”.
A ardente descrição da Queimadinha é do jornalista Juarez Bahia (1930-1998). Ele nasceu na vizinha Cachoeira, mas cresceu no bairro. Décadas depois, este o inspirou no romance Setembro na Feira, lançado em 1986. A personagem principal é Juarez Bahia menino – Florêncio, no romance – que resgata lembranças da Queimadinha e da Feira de Santana da década de 1940. Ei-lo adiante:
“Campos no verão ressecados, ralos, esvaídos, verdes gerais no inverno, por setembro em fora mistura de tabuleiro e caatinga, Queimadinha se conforma, melancólica, paciente (…) Na terra queimada, áspera, enérgica deste lugar da Feira, o verde nasce e morre antes de crescer o bastante para adubar a paisagem”.
O romance registra uma transformação urbana importante: a construção do Campo do Gado – o atual Campo do Gado Velho – cujo acesso se dava pela estrada que cortava a Queimadinha e que, posteriormente, foi batizada como Intendente Abdon. A iniciativa estreitava os laços do bairro periférico com o acanhado centro feirense, naquela época restrito a escassas ruas e praças.
A Queimadinha de Juarez Bahia era lúdica: os pastos que limitavam os horizontes da Feira de Santana, as lagoas e olhos d’água, características daqueles tempos, os logos silêncios rurais, as estrelas cintilantes que a frágil iluminação urbana não espantava. Um parágrafo resume bem o bairro à época:
“O verde que não tem por todo o tempo, o boi que tem por essa vida, a Queimadinha é mais contemplativa, convive com o sofrimento e com a grandeza, com a falta d’água e a feira do gado. O calor sufocante, opressivo como fogo da terra (…) Tratadores de carne, boiadeiros, vaqueiros, cantadores, seleiros, coureiros, cortadores de barriga, magarefes, poetadores, capatazes.”
A feira de gado se foi e a falta de água diminuiu, embora o saneamento ainda seja uma necessidade crônica. Junto com a feira, partiram os trabalhadores que encantavam Juarez Bahia na sua infância. Desde então a população da Queimadinha se multiplicou, o comércio se expandiu e a feição de roça acanhada só sobrevive na memória dos mais velhos. Os trabalhadores dedicam-se a ofícios urbanos, compatíveis com a Feira de Santana metropolitana.
Não há tantos romances ambientados aqui na Feira de Santana. Há lugares em que a produção é muito mais prolífica. Sobre a Queimadinha, particularmente, não conheço outra obra ambientada no bairro. Daí a importância da contribuição de Juarez Bahia que, embora esquecido por aqui – é bom sempre ressaltar este detalhe – figura entre os maiores expoentes do jornalismo no Brasil.
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