“…Parece que tem espinhos na cama…”
A frase é o refrão de uma canção do Trio Parada Dura. Ouvi-a muito no começo dos anos 1980. Fazia bastante sucesso nas rádios, tocava sempre. Mas – não sei exatamente por que – lembro que tocava infalivelmente nas noites de sábado. Estava eu lá, distraído na minha meninice, quando, subitamente, lá vinha “espinhos na cama” no rádio alto do bar da esquina. Naqueles tempos, as noites de sábado antecediam a animada feirinha do Sobradinho.
Essas noites de sábado também eram animadas. A animação, na verdade, começava já no meio da tarde, quando chegavam os primeiros feirantes, atarefados, montando suas barracas. Lembro daqueles característicos chapelões de palha que, à distância, tornavam pitorescas as silhuetas destes trabalhadores.
Mais tarde, iam chegando as mercadorias: frutas, verduras, legumes. Aquele momento já mobilizava mais gente. Carregadores retesavam músculos para transportar fardos pesados, ágeis condutores de carrinhos-de-mão moviam-se com perícia, desviando dos sacos e barracas, ordens e contraordens eram gritadas de lá e de cá.
A atenção que a faina exigia impunha uma tensão que só se dissipava quando a feirinha – até hoje ela espalha-se pelas cercanias do Colégio Estadual Coriolano Carvalho, onde estudei – mergulhava na escuridão, à noite. De casa via, então, à distância, sombras deslizando entre as silhuetas das barracas. Nas minhas fantasias infantis, eram espectros terríveis vagando, ameaçadores.
No domingo, logo cedo, as vozes, as imprecações, os risos, os gritos, o mercadejar intenso, tudo ali na Rua da Palma lembrava a feirinha. Havia dezenas de barracas e produtos – frutas, verduras, cereais, carnes, móveis, utensílios plásticos e de alumínio, até pássaros silvestres –, mas, para mim, o único produto essencial eram os brinquedos plásticos que uma preta idosa, de sorriso encantador, vendia a retalho numa banquinha nos fundos do Coriolano Carvalho.
As lembranças são inesquecíveis: sempre que apareço por lá, instintivamente, procuro-a no canto em que montava sua banquinha humilde. Sei que, hoje, o que há são boxes que vendem cerveja e churrasco a clientes ruidosos. Mas mesmo assim, busco-a. Provavelmente ela faleceu há muitos anos. Imagino que a procuro buscando reforçar os fios afetivos com aqueles tempos.
À tarde, a feirinha morria, exangue. Restavam detritos, muita sujeira, barracas desmontadas, bêbados, profunda desolação. Às vezes, garis apareciam, aos gritos, antecipando o trabalho, muito vivos, tangendo a tristeza que se abatia e que ficava mais pesada à medida que a tarde caía. Mas nem sempre eles apareciam. Restava, então, aos urubus frequentes, a função de emprestar vida àquela paisagem morta.
Nem sei porque essa lembranças afloraram, tão vivas. Talvez seja o desejo difuso de – sei lá – fazer pazes com o passado; talvez seja a dificuldade de lidar com o presente ruinoso do país, com o seu futuro incerto, impreciso. Pode ser, quem sabe, que as saudades da infância cresçam à medida que se vai ficando velho. Nunca ouvi ninguém dizer isso, mas talvez seja assim.
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