Era um liberal. Mais: um ultraliberal. Um privatista. Um fervoroso fiel da fé de que o Estado é viciosamente ineficiente e a iniciativa privada competente e competitiva por princípio, por motivação intrínseca. Não, o homem não estudou em Chicago, nem em nenhuma dessas prestigiosas faculdades de Economia espalhadas pelos países ricos. Na verdade, provavelmente estudou pouco: quando um interlocutor indagava, torcia a conversa, o olho brilhando um brilho de rancor e recriminação.
– Estado mínimo, a carga tributária é alta, exploram a gente! – Recitava.
Exibia um antigo aparelho celular, mas, manuseando-o, demonstrava pouca intimidade com a tecnologia. De onde vinham aquelas noções difusas, aquelas frases feitas, aquela leitura maniqueísta do papel do Estado? Muitos hoje se instruem lendo tweets, assistindo vídeos no Instagram ou absorvendo frases feitas nos cards do Facebook. Os mais letrados enveredam por encarniçados debates nessas mídias. Mas ele, não.
– A gente paga imposto caro até na dose de pinga!
Lançava a frase, quase invariável, no metódico ritual de entornar a dose de cachaça que descansava sobre o balcão. Fungava, franzia a testa, os dedos finos tremiam suavemente. Então, com valentia, engolia tudo num gole guloso. Aí tirava o gosto mastigando uma fatia de laranja, um pedaço de caju, uma rodela de limão.
– Funcionário público ganha bem, não trabalha, se aposenta cedo! Tem que privatizar tudo, vender a zorra toda!
Aí ele desfiava exemplos, o olho miúdo cintilando de indignação. Nem sempre as sentenças candentes repercutiam: frequentava as barracas ou as biroscas populares do centro da Feira de Santana, do Centro de Abastecimento, da feira-livre da Estação Nova. Nelas, ambulantes, camelôs, trabalhadores informais e biscateiros envolviam-se pouco com o papo, atarefados.
Às vezes, porém, encontrava um interlocutor. Aí, exultava:
– Veja você: estrada esburacada, a gente pagando imposto e nada. Escola ruim, não tem serviço de saúde, água encanada custando uma fortuna! Tem que vender, aí os empresários investem, tem concorrência, o preço cai! É assim nos Estados Unidos, lá tudo é barato!
A cantilena arrastava-se. Na verdade, um monólogo. Quando o interlocutor concordava, assentia com gravidade, solene. Qualquer contestação, porém, abespinhava-o. Mais velho – o cabelo branco, encanecido, exibia falhas que ele, pateticamente, tentava corrigir com o pente – não admitia questionamentos, indagações. Exigia respeito: mulheres, jovens, pretos, pobres – ele se via como classe média, conservador, sisudo – tinham que se por no seu lugar, a sociedade tem suas castas, sempre teve. Agora, queriam subverter tudo.
Delirou com a vitória de Jair Bolsonaro, o “mito”. Circulava sorridente – os dentes, tortos, amarelados pelo cigarro – e prognosticava conservadorismo, ultraliberalismo, patriotismo, tudo sob a tutela da família, da religião. O pior é que veio a desgraça: a política de preços da Petrobras, a privatização de refinarias, os preços dos combustíveis numa escalada ensandecida, enfim: economia de mercado. Proprietário de um antigo Fiat Uno – relíquia dos anos 1990, cheia de mossas e ferrugem – revi-o num posto de combustíveis da Avenida Maria Quitéria, lamentoso:
– O preço da gasolina sobe todo dia, está um horror! Preciso do carro para ir ao médico, levar alguém aqui ou ali, a cidade não tem transporte…
Aguardei. O frentista concluía seu trabalho, ele estendeu a nota de cinquenta – filha única, lamentou –, olhou o piso de cimento do posto enxergando o vazio e arrematou:
– O governo não faz nada, não há um homem para governar esse País…
Aí ligou o motor e, aos arrancos, soltando fumaça, foi embora.
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