Durante cerca de seis anos – com algumas interrupções breves – dediquei-me à reportagem policial aqui na Feira de Santana. Atuava em jornais impressos. Isso há cerca de duas décadas. Nem tenho ideia de quantas matérias e notas escrevi, nem de quantos assassinatos cobri, fazendo reportagens. Sei que foram muitos, provavelmente centenas. Naquelas jornadas desenvolvi uma convicção: há um perfil etário, de cor, de residência e de escolaridade de quem morre.
Mesmo afastado do jornalismo policial, sigo acompanhando o noticiário com interesse. Também me dedico a ler livros sobre o tema, tentando entender o fenômeno da criminalidade. Nestas leituras descobri, então, que o perfil da vítima de homicídio é uniforme no Brasil inteiro e converge com aquele que fui traçando ao longo de tantas coberturas.
Não foram poucas as ocasiões: após algum telefonema avisando sobre a ocorrência – a clássica expressão da burocracia policial que a imprensa costuma absorver –, saíamos precipitados da redação para fazer a matéria na cena do crime, com o devido registro fotográfico do cadáver. O destino era sempre muito semelhante: bolsões de pobreza nos limites do Anel de Contorno ou algum bairro pobre na violenta periferia feirense.
Lá nos deparávamos com o corpo de um jovem negro, abatido a tiros, quase sempre alvejado na cabeça e no peito. Consultadas, as autoridades policiais comunicavam que a vítima tinha antecedentes criminais ou envolvimento com o crime, quase sempre tráfico de drogas. A informação – sentia-se no ar – reconfortava os “cidadãos de bem”: quem morreu devia, era criminoso. Boa parte dos homicídios envolvia esse roteiro.
Hoje, lendo as notas sobre os crimes que os sites locais divulgam, é como se revisse aquelas mesmas matérias que eu próprio escrevia: jovem preto ou pardo, pobre, da periferia, baixa escolaridade, sem ocupação formal, supostamente envolvido com o crime abatido a tiros numa viela qualquer. Nada mudou, portanto.
Cultivo uma sensação de horror porque muitas dessas vítimas eram crianças ou nem tinham nascido quando me aventurava em coberturas policiais. Nada, de fato, mudou. Imagino que sejam filhos, sobrinhos, irmãos, primos, até netos daqueles que tombavam naquela época. Hoje, a propósito, há um agravante: morre-se em escala muito maior do que naqueles tempos.
Em ano eleitoral é comum o estardalhaço sobre a segurança pública. Quem está no governo diz que contrata policiais, compra viaturas, armas, munição e coletes para as polícias. Quem está na oposição alega que é necessário contratar mais policiais, comprar mais viaturas, mais armas, mais munição e mais coletes para as polícias. Os números atestam que a fórmula é um fracasso, mas ela tem apelo, entusiasma o eleitor.
Pelo visto, o Brasil vai seguir na toada da teoria do inimigo interno, que tem de ser eliminado: o preto e o pardo, o pobre, o jovem sem oportunidades residente na periferia que, supostamente está vinculado ao crime, às facções. Mais doloroso que saber que nada mudou, é perceber que, pelo visto, muitos desejam que nada mude. Depois, quando se fala em genocídio da população negra, muitos se abespinham, indignados, duvidando. Triste Brasil que se prepara para eleger seus governantes.
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