Nasci e me criei em Feira de Santana, no bairro do Tomba, em 1976. Sou a caçula de uma família de cinco irmãos. Tive uma infância muito feliz, cercada de cuidados de meus irmãos e irmãs, mãe e madrinha. Meu pai veio a óbito quando eu tinha 9 anos. Minha família era de tradição católica, e nessa tradição vivi minha infância, fiz primeira comunhão, participei de escola de catecismo, novenas, procissões. Desse período cultivo a lembrança grandiosa e significativa de minha professora de catecismo, e minha amiga até hoje, professora Railda Neves. Um dos grandes exemplos de minha caminhada.
Minha casa ficava na Rua Pedro Américo de Brito, 676. Uma casa simples, com paredes ao lado colada em uma casa de um lado e do outro, sem janelas nos quartos, e banheiro que ficava no quintal. Ah, mas o quintal…O quintal de minha casa representa muito a minha infância. Costumo dizer que o meu quintal era maior que a minha casa. Dele eu tenho muitas lembranças boas e muitas memórias. Lembro do meu irmão mais velho, Dinho, um dos primeiros jovens negros do bairro que conseguiu trabalhar nos correios, e que caminhava muito pelo bairro entregando cartas e era conhecido de todos. Ele e meu irmão, Van, chegaram a participar fervorosamente do Afoxé Flor de Ijexá. Van cultivava o seu black bem alto naquela época e ouvia muito as músicas de Gilberto Gil e muitos reggaes, o que influenciou muito meu gosto musical, e depois muito mesmo do que eu sou hoje. Passava as tardes em cima da mangueira e da goiabeira branca, brincava com as minhas amigas, sonhava com o meu futuro embaixo de minha mangueira. Observava minha mãe que cuidava muito bem de tudo, criava galinhas, plantava ervas medicinais. E eu, cuidava das diversas ervas que minha mãe cultivava, aprendia, crescia. Ao lado de minha casa moravam meu tio materno e sua esposa que era minha madrinha, Maroquinha, com seus 3 filhos. Cresci em sua casa, comendo de sua comida e sob os seus cuidados. Brincava com minhas vizinhas e ao longo dos anos, foram muitas famílias que passaram pela Pedro Américo de Brito. Nessa rua, morava o antigo vereador, eleito pelo bairro do Tomba, Bartolomeu Pondé. Esse foi o meu primeiro contato mais de perto com a política feirense. Ter um vereador morando na mesma rua de sua casa. Nossa! Uma criança como eu, já começava a conhecer sobre a política da cidade. Lembro que o vereador estava precisando de alguém para datilografar algumas coisas para ele. Estava pagando alguns trocados para esse trabalho. E eu que tinha acabado de concluir o curso de datilografia, falei com minha mãe para oferecer os meus serviços de datilógrafa, e foi assim que datilografei alguns trabalhos para ele.
Eu estudei no Colégio Polivalente, da 5ª a 8ª série, entre os anos 1985 e 1988. Eu considerava o máximo estudar nessa escola! Sempre admirei as árvores ao entorno da escola, gostava da estrutura das salas e do espaço físico do Colégio. Amava as aulas de Educação Física, com a Professora América, os times de handebol e, particularmente, gostava deveras de participar do grêmio estudantil. Nesse espaço do Polivalente, eu fui profundamente influenciada pela rebeldia de minha professora de História, Glad Lira. Ela era a imagem de mulher contestadora, rebelde e revolucionária que me saltava aos meus olhos de menina. Lá me descobri militante social e tomei gosto por assuntos políticos. Depois disso, através do marido de minha irmã, ganhei uma bolsa e pude estudar no Colégio Castro Alves, em 1989. Fui reprovada no 1º ano do ainda segundo grau, e senti na pele o abismo entre os conteúdos estudados em um ano numa escola pública e numa escola privada na cidade. E em 1990, já sem bolsa de estudos, com muita luta, consegui uma vaga na disputada Escola Técnica Áureo de Oliveira Filho, na Santa Mônica, para fazer o curso de Técnica em Edificações, no qual me formei em 1994, e me orgulho muito. Nesse período me bati de frente com as lutas políticas e tive o privilégio de ter como professor e grande influenciador o professor Gerinaldo Costa, atual presidente do PT da cidade. Nesse ínterim, perdi uma irmã de 23 anos. Essa experiência me sensibilizou e me aproximou de uma amiga que me apresentou a juventude de uma igreja protestante do bairro. Aí fui acolhida e trago com carinho a memória de experiências significativas vividas aí na Igreja Congregacional do bairro do Tomba e depois da Cristovão Barreto. E minha militância passou a ser alguns lugares carentes do Tomba, especificamente a rua Itiúba, conhecida como rua da lama. Em seu entorno, eu cresci enquanto ser humano, mulher nas ruas e nos movimentos sociais da igreja. Mergulhei profundamente nessas águas.
Trabalhei como estagiária em obras de construção civil na cidade, fiz concurso para embasa, e lá trabalhei apenas 3 meses na área de edificações. Pedi exoneração do cargo, pois descobri que não tinha grande talento e nem motivação necessária para seguir em frente. Fui trabalhar no comercio de Feira e deixei de lado o sonho de entrar para a universidade, pois nesse momento era somente eu e minha mãe, viúva, e que dependia somente de uma pensão deixada pelo meu pai. Fui trabalhar para ajudar a minha mãe e a mim mesma. Após a morte de minha irmã, saímos de nossa casa do Tomba, e moramos em algumas casas alugadas, no Sobradinho, morada das Árvores. E assim, dei reforço escolar a filhos de famílias mais abastadas, vendi doces (muita paçoca), fui babá, fiz faxinas para pagar material escolar do curso que fazia na Escola Técnica, e para colaborar com as despesas da casa. Por fim, trabalhei na Farmácia Silva, e em uma livraria evangélica da cidade, chamada Kirius. Casei, engravidei de minha única filha, Emilly, que agora tem quase 24 anos, e vive em Salvador, trabalhando no Instituto Anísio Teixeira (IAT). No ano me descobri grávida dela (1988), eu voltei aos estudos, no STBNe – Seminário Teológico Batista do Nordeste. Fui fazer o curso de Educação Religiosa e Música Sacra. Passei 5 anos no Seminário. Me formei em Pedagogia Cristã, na nova nomenclatura do curso, e depois fiz a convalidação do curso em Teologia. Nesse espaço, o qual chamávamos de Esquina Teológica do Mundo, cresci academicamente, tive significativas experiências comunitárias e de fraternidade. Conheci pessoas inomináveis, tive contato com diversas teologias, crenças, saberes. Aprendi a respeitar todas as religiões, credos, não-crenças. Nesse espaço brotou a semente daquilo que estou-sendo hoje. Sementes feministas, anti-racistas, anti-intolerância religiosa. Foi nesse espaço que comecei a ler Ivone Gebara e Leonardo Boff, por exemplo, e me deslumbrei com Rubem Alves e encontrei, meu mestre Paulo Freire. Conheci aqui meus professores e professoras, Jorge Nery, Eliabe Barbosa (3ª pessoa de Zé Ninguém, como ele se apresentava), Merval Rosa, Bianca Daéb´s, Marcos Monteiro, Allan Callahan, que impactaram profundamente minha experiência com o Sagrado e com a comunidade. Conheci e fiz amizades profundas que cultivo até hoje e que mudaram para sempre a minha vida, e que não abro mão de seguir segurando suas mãos, no STBINE, Elaine Miranda, no STBNe, Anísia Neta, Aletuza Leite, Kelly Brito, Denilson Lima, Zózimo Trabuco, dentre outros. Hoje em dia, não atuo mais diretamente em espaços religiosos protestantes da cidade, mas acredito que deixei muitas amizades e lembranças de trabalhos realizados por lá. Considero-me uma pessoa que consegue dialogar com pessoas de todas as religiões, poderia me considerar ecumênica. Frequento também as umbandas, os candomblés, os centros espíritas. E particularmente, tenho aprendido muito com as Ialorixás da cidade, que costumo chamar de Iyalodês de Feira de Santana. Elas são intérpretes da cidade.
Somente no ano de 2005 é que consegui fazer vestibular. Nesse ano fui cursar letras com francês na UEFS, no qual estudei por cinco semestres. Sempre trabalhei e estudei. Nesse período, já havia concluído o curso no STBNe, e era ministra de educação na Igreja Batista Central, na qual trabalhei de 2003 até 2007. Ano do meu divórcio e de minha saída da Igreja. Viajei em 2006 para uma experiência de estágio de 3 meses no revolucionário projeto educacional (Fazer a Ponte) da Escola da Ponte, em Vila das Avis, no norte de Portugal. Voltei cheia de sonhos com a educação revolucionária. Logo depois, Interrompi a graduação na UEFS para participar de um intercâmbio em Portugal em 2007. Vendi todas as minhas coisas, aluguei minha casa e fui de mudança para Portugal. Fui intercambista por dois semestres e depois participei da seleção para o mestrado na Universidade de Coimbra em 2008. E assim fui cursar o mestrado em Estudos Feministas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Passei, praticamente quatro anos vivendo na europa. A maior parte do tempo em Portugal (estudando e trabalhando), mas também viajei e tive experiências em Suécia, Luxemburgo, etc, e vivi algum tempo na Alemanha, e na República Tcheca. Foi um período muito importante de minha vida, de solitude, reflexão, aprendizagens, refazimento.
Defendi minha dissertação em 2011, na Universidade de Coimbra, ano em que voltei para o Brasil. Foi em 2011 também que me aproximei do núcleo do PSOL de Feira de Santana, que se organizava nessa época e, juntamente com companheiros e companheiras, ajudei a construir o PSOL em Feira. A primeira sede do PSOL funcionou em um anexo da minha casa. A primeira campanha do PSOL foi pensada nesse lugar, a primeira convenção oficial do partido aconteceu ali, bem como o planejamento das primeiras candidaturas de prefeito e vereadora, no ano de 2012. Foi uma experiência ímpar, cheia de vigor, força, esperança, sonhos. Foi uma experiência revolucionária para mim. Foi como concretizar todas as experiências anteriores, a do grêmio estudantil do Colégio Polivalente, das mobilizações estudantis com alunos e professores da Escola Técnica, das lutas nos projetos sociais nos anos da igreja, enfim. O ano de 2011 também foi muito importante para mim, pois passei a militar no Coletivo de Mulheres de Feira de Santana, do qual tenho como grande exemplo de vida a idealizadora desse projeto e uma amiga muito querida, Ana Rita Costa (muita gente conhece como Rita do Pet). O Coletivo de Mulheres me levou ao Mulieribus – UEFS, e me fez encontrar no caminho o MONDEC e o grande exemplo de Fátima, essa grande militante feminista da cidade, e me fez encontrar no caminho outras tantas mulheres de luta da cidade.
Em 2012, voltei a estudar na UEFS. Fiz novo vestibular e voltei para estudar letras com inglês. Conclui, fiz mestrado em Estudos literários, e passei a participar do grupo de Estudos de Estudos Literários Contemporâneos – GELC, e aqui tive grande influência do meu querido mestre Adeítalo Pinho. Ele me influenciou para a escolha de estudar escritoras negras quando me apresentou a Maria Firmina dos Reis. E foi através da minha dissertação de mestrado que encontrei com a temática das Iyalodês, que ano passado me conduziu até às Iyalodês de Feira de Santana. Tudo interligado. Através dos estudos de mestrado na UEFS, fui contemplada com uma bolsa de estudos que me levou até a PUC-Rio para estudar uma disciplina, A África que há em nós, em 2017, com a professora baiana Eneida Leal Cunha. Fiquei entre Rio de Janeiro e Petrópolis entre 2017 e 2018. Em Petrópolis militei no PSOL, me envolvi com a temática da negritude de maneira muito visceral. Lá eu estava na ocasião do assassinato de Marielle Franco, o que foi muito impactante vivenciar tudo isso de tão perto das minhas irmãs pretas do partido. Aliás, um mês antes de seu assassinato, estive participando de uma audiência pública na Alerj, na qual Marielle se fazia presente.
Em 2014, minha família e eu passamos por uma experiência de violência, quando perdemos o meu sobrinho Kevenne Lopes, assassinado aos 21 anos aqui na cidade, no bairro do Tomba, em frente ao Colégio Ana Brandoa, á poucos metros de sua casa. Ele é para mim o meu motivo de levantar com todas as minhas forças a bandeira de luta contra o genocídio da juventude negra, e que consequentemente me levou a militar na luta antirracista, e assim, defender o movimento da educação antirracista, e passar a defender o movimento da Teologia Negra. bell hooks já era minha inspiração nessa caminhada desde os tempos dos estudos feministas em Portugal, e passou a ser, mais ainda, depois desses acontecimentos todos. Me inspiro muito nas militâncias de Odja Barros e de Ronilson Pacheco no que tange a essas temáticas. Todas essas vivências foram fundamentais para que eu valorizasse a discussão cada vez mais de temáticas como: educação antirracista, feminismos plurais, segurança pública, principalmente nos bairros periféricos da cidade, o transporte público, a acessibilidade, o papel das polícias, a descriminalização das drogas, o acesso à saúde pública, e outros. E também por entender que o cuidado com a cidade, com os trabalhadores e as trabalhadoras, em suas vivências cotidianas, é que resultará na construção de uma cidade para a maioria da população e numa cidade mais democrática. Por isso, pensar os lugares em que trabalhadoras e trabalhadores exercem o seu trabalho é importante e necessário. Desde que passei a militar no PSOL e fui candidata em 2012 e 2014, respectivamente, a vereadora e a deputada federal, tem sido muito difícil conseguir trabalho em Feira de Santana. Atuei muito tempo em prestação de serviços para escolas, espaços educacionais, dei aulas particulares em minha casa, enfim. Fui bolsista da UEFS em alguns programas, como o Universidade para todos, o Pré-vestibular cidadão. Trabalhei em algumas escolas particulares, no Pronatec em cidades como São Gonçalo e Conceição da Feira. Fui professora bolsista e dei aulas no Programa da UFBA Gênero na Escola, na plataforma Moodle, trabalhei como coordenadora pedagógica em Santo Estevão por alguns anos, enfim. Sempre lutei pela sobrevivência. Como toda mulher negra feirense, tenho batalhado muito todos os dias, desde que me entendo por gente.
Penso que Feira de Santana precisa construir um caminho que resulte em políticas públicas para a maioria da população, principalmente nos bairros periféricos e nos distritos. É urgente pensar em um plano de democratização da cidade! Escutar a sua população para conhecer as suas necessidades e saber por onde começar. Fazer consultas públicas, promover audiências públicas, debates, plebiscitos; ouvir a população. A população tem sofrido com o aumento dos casos de feminicídios, genocídio da juventude negra, descaso com os camelôs da cidade, com as mulheres que trabalham nas ruas da Marechal, Sales Barbosa, com os trabalhadores do Shopping Popular. Há décadas convivemos com o descaso do executivo da cidade com as lagoas, o rio, com as árvores e a nossa natureza. Não temos nenhum plano de revitalização, nenhum planejamento ambiental. Esses são temas caros para mim. A questão da saúde também me toca bastante. Por ter endometriose profunda há mais de vinte anos, e nunca ter encontrado tratamento e nem apoio na rede pública de saúde e a doença ainda ser desconhecida nas redes municipais de saúde, PCFs e Policlínicas da cidade, esse assunto da saúde sempre mexeu comigo. Converso com outras jovens e mulheres que tem o mesmo problema de saúde que eu e como eu, já passaram por diversas cirurgias, e dilemas parecidos na rede de saúde da cidade. Me preocupo, particularmente, com as muitas mulheres negras que tentam acessar a rede de saúde da cidade. Penso que todas essas questões que citei tem a ver com a política. Como diz muito bem um antigo, mas atual lema feminista: “O pessoal é político”. Por isso, penso que temos que incentivar as pessoas a participar da política, a fazer escolhas e entender que esse ato é muito importante para o futuro do nosso país. Eu ainda me lembro muito bem de todos os meus passos em direção ao posicionamento político no mundo e penso que todos eles foram importantes, desde as vivências estudantis às vivências nos espaços religiosos, nos movimentos sociais e no partido político. Lembro ainda de todo a minha gana e crença em um mundo melhor ao dar o meu primeiro voto em 1994 em Lula da Silva. Todas essas minhas experiências, do voto à militância, foram intensas. Algumas foram frustrantes, como o período após as eleições de 2014, quando fiquei inelegível, por conta de uma prestação de contas prestada equivocadamente pelo partido. Mas mesmo essa experiência ruim e traumática, que roubaram meus direitos políticos e civis por quase seis anos, me fez mais forte e mais consciente de que a luta muda vidas e de que é necessário lutar sempre.
Eu não sei o que será o futuro, nem de Feira, nem do Brasil, muito menos do mundo. Mas sei de uma coisa: se lutarmos e acreditarmos, será no mínimo, diferente do que é agora. Ano passado, o TRE (Tribunal Regional Eleitoral) me devolveu os direitos políticos e civis. Não tenho pensado no momento em voltar a militar no movimento partidário, mas nunca penso em abandonar a luta política. Ela é também uma luta pessoal, ao passo que é coletiva. Acompanho sim, os fatos políticos locais, estaduais, nacionais e do mundo. Faço minha análise de conjuntura a partir do lugar que estou no momento, e nos últimos quatro anos, que é a socioeducação do estado, na Fundação da Criança e do Adolescente – FUNDAC. Aqui fiz a minha casa e o meu espaço de luta durante esses últimos quatro anos. Daqui acompanhei a política local, as manifestações partidárias, inclusive do PSOL, ao qual ainda estou filiada. Daqui assisti a conquista do mandato de vereador tão sonhado não só por mim. É deste lugar da socioeducação, que coincidentemente estarei ocupando até o dia de amanhã, que eu fiz da minha luta a minha vida. E continuo acreditando na Revolução, nos ideais de socialismos e de liberdades, um dia defendidos pelas esquerdas ao redor deste mundão. E ainda acredito, que assim, combateremos os fundamentalismos tantos (racismos, misoginia, lgbtqifobias, etc) e desbravaremos mundos novos, com mais justiça, paz, fraternidade e liberdade para ser o que se é e o que se quer ser.
Nota do BF – O texto acima é resultado de troca de mensagens/entrevista via WhatsApp entre a autora e o jornalista Jânio Rêgo.
Excelente matéria! Sidineia é um mote de resistência e esperança política cidadã. Se eu já a admirava, agora muito mais me orgulho dessa mulher incrível. Parabéns, Blog da Feira por trazer à tona esse tesouro de história de vida!
Viva os/as verdadeiros/as humanos/as!