– Lembro bem daquele tempo de inflação, nos anos 1980. Às vezes a gente estava bem, até comprava iogurte, chocolate, biscoito recheado. Mas depois a situação piorava de novo e voltavam os tempos duros. Durante muito tempo tomava café preto, comia pão sem margarina…
Quem relembra isso é um feirense vivido, com quase 50 anos. As recordações não figuram em livro de memórias, nem em crônicas que descansam em fundo de gaveta. Tampouco foram lançadas em mesa de bar ou numa reunião de família. Representam, na verdade, a inquietante conexão entre o passado e o presente, por meio de um fenômeno econômico que volta a assutar: a inflação.
– Uma nota de cinquenta (reais) já comprou muita coisa. Hoje você vai numa padaria, num mercadinho, numa farmácia e não compra quase nada. Nem mesmo nas feiras-livres ou no Centro de Abastecimento.
Para ele, a paralisia econômica torna tudo muito pior. O auxílio emergencial atenuou um pouco suas perdas na fase mais dura da pandemia – ele é comerciante miúdo, ou empreendedor, conforme a festejada expressão na moda -, mas a letargia que freia a retomada vem ampliando os sacrifícios, adiando para o futuro incerto ambições modestas: a reforma na casa, a aquisição de novos eletrodomésticos, uma viagem para visita familiar, planejada há vários anos já.
Indago sobre as memórias daqueles anos de inflação vertiginosa – foram várias moedas diferentes num intervalo curto, de oito anos – mas ele prefere espichar o olhar, imergir nas dificuldades atuais. A mulher, os dois filhos pequenos, a penca de familiares enfrentando as adversidades da pandemia, da paralisia econômica, o deixam desolado. “Se pudesse, saía do Brasil”, afirma, subitamente, invocando uma ilusão corrente nesses amargos anos de doença, de arroubos autoritários, de incompetência e corrupção, de ódio e de morte.
No comércio de laticínios que mantém, ele tenta segurar os preços, não afugentar a clientela, arredia. Mesmo assim, muitos fregueses desapareceram, os derivados do leite estão caros e vão sumindo da dieta. Quando vai ao supermercado para abastecer a própria geladeira, espanta-se com a carestia. Vai substituindo produtos, recorrendo ao que é mais barato, mas, mesmo assim, sabe que a estratégia tem limites.
– O tempo vai passando. A inflação não cai e a economia não se recupera…
Pensei em indagar sobre as perspectivas para o futuro, mas julguei inútil. O que esperar do desalento, do desencanto senão desalento e desencanto? O cenário, aliás, é efetivamente desanimador. Autocratas rugem, a inteligência e o conhecimento definham, ideologias obscurantistas se popularizam, almejam aspergir suas sombras Brasil afora. Prevalecem – é sempre bom lembrar – o ódio e a morte.
O papo ia morrendo com a tarde – no outono a noite cai muito abrupta – mas o sujeito abriu um sorriso, seus olhos cintilaram. Uma lembrança – um sentimento – diluiu as trevas, reais e imaginárias, que o entristeciam. “Naquela época a gente tinha pouco, vivia no perrengue, mas era feliz…”. Concordei, enfático.
É que os tempos eram outros. Apesar das adversidades, havia uma disseminada confiança no futuro. O País saía da ditadura militar, direitos eram reconquistados, alimentavam-se esperanças. Hoje vive-se o exato reverso daqueles tempos promissores. Mas é melhor parar por aqui porque hoje, afinal, é sexta-feira.
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