Desceu a ladeira do Alto do Cruzeiro na Quarta-Feira de Cinzas. As lágrimas escorriam, caudalosas. Ali as testemunhas eram escassas: raras moradias, algum comércio, muros delimitando terrenos baldios. Quem poderia examiná-lo seriam os motoristas, mas estes ocupavam-se com seus pensamentos, com o trânsito, com os buracos e – suprema desgraça! – , com os preços dos combustíveis. Pouco significava um pedestre chorando lágrimas copiosas, ébrio de pesar, os passos incertos porque os olhos nada distinguiam, embaciados.
-Sai, miséra! – Gritou um, exaltado.
Ali na Avenida Canal – o Centro de Abastecimento era apenas um vulto informe à frente dos olhos, as lágrimas persistiam – quase arromba-se nos automóveis, nos caminhões, nas carroças, nas dezenas de motos; Havia feira atacadista, mercadejar ávido, era preciso compensar com lucros a pródiga folga carnavalesca.
Soluçava quando contornou poças das chuvas recentes, galgando o canteiro, o barro úmido. Ali distinguia os lombos dos barracões, intuía a azáfama lá dentro, gente vendendo, gente comprando, naquela mercantil insensibilidade à sua dor. O ronco dos motores amainou, intuiu o sinal vermelho – avançou, insensato, indiferente – e desembestou, desabalado, desgraça nenhuma poderia feri-lo mais, a vida acabara-se naquela Quarta-Feira de Cinzas de nuvens baixas, de céu encardido.
– Olha o cara chorando!
Foram os taxistas naquele cotovelo da Juvêncio Erudilho com a Avenida Canal, boquiabertos com aquele despropósito de lágrimas. No serviço, proseavam, à espera de passageiros, e viam aquilo, o marmanjo chorando, de soluçar. No Centro de Abastecimento um carregador freou num gesto brusco, espantado; O caminhoneiro – carga de laranjas na carroceria – que via de tudo pelas estradas ficou pasmado, embasbacado; até as moças que ofereciam hortaliças – coentro, cebolinha, salsa, hortelã – apiedaram-se, nos rostos uma expressão de dor.
– O velho chorando, o velho chorando!
Aí já foram os molecotes que, endiabrados, corriam pelos galpões, em meio às mesas plásticas das cervejarias, aos balaios de limão, às churrasqueiras que sapecavam carne. Uns riram, outros se espantaram, mas um deles – premonitório, quem sabe? – examinou-o muito sério, pressentindo as primeiras dores da vida adulta. Seguiu, verdureiras suspenderam a faina, clientes retraíram-se do exame do tomate e da cebola só para vê-lo, as lágrimas ainda intensas, os soluços já espaçados, mas dolorosos.
Só ali na Praça do Tropeiro – onde já fora feliz em inesquecíveis tarde de sábado regadas a samba, cerveja e arrocha – serenou um pouco, apesar dos arrancos no peito, dos olhos que agora ardiam, subitamente secos. Contornou táxis, bicicletas, motos, carros, ônibus – um caminhão barulhento – e enveredou pelo labirinto de barracas metálicas. Numa delas – exatamente naquela em que tudo começara! – freou, escolheu a mesa no canto, de tantas lembranças, sentou e requisitou – ainda trêmulo – um litrinho e uma dose de aguardente, no copo plástico.
Ali, a partir daquele momento, ia começar a esquecer Dorinha, que ele flagrara com outro bem naquele começo de manhã no Alto do Cruzeiro.
Ele não sabia mas, naquela mesa, dançavam, incandescentes, os versos de “Poema de uma Quarta-Feira de Cinzas”, do poeta pernambucano Manuel Bandeira: Entre a turba grosseira e fútil/Um pierrot doloroso passa/Veste-o uma túnica inconsútil/Feita de sonho e desgraça.
Tem mais: O seu delírio manso agrupa/Atrás dele os maus e os basbaques./Este o indigita, este outro o apupa…/Indiferente a tais ataques. Por fim, o poeta arremata: Nublada a vista em pranto inútil/Dolorosamente ele passa./Veste-o uma túnica inconsútil,/Feita de sonho e desgraça.
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