Naquele tempo – começo dos anos 1980 – o acesso à oferta regular de água encanada ainda era uma aspiração dos feirenses. Com muita frequência o abastecimento era interrompido, causando transtornos. Quem dispunha de grandes reservatórios passava menos aperto, tinha sempre água disponível. Mas como se viravam os demais feirenses? Ali, junto à feirinha do Sobradinho, existia um antigo e providencial chafariz. Era ele que auxiliava as famílias das redondezas. Com o tempo, foi se degradando e, hoje, não existe mais. Subsiste só na memória de quem viveu aquela época.
Lembro que no chafariz havia uma caixa d’água imensa, visível à distância, com sua fachada cinzenta. De perto, notavam-se suas colunas esguias, impregnadas de limo. Uma única torneira fornecia a água que os moradores das cercanias demandavam, para beber ou cozinhar. Para as demais tarefas domésticas, era necessário aguardar que o fornecimento fosse restabelecido.
A organização da fila era pitoresca: uma sequência de vasilhames de tamanhos diversos – latas, baldes, recipientes pequenos para as crianças, também mobilizadas para ajudar – serpenteava sobre o piso sempre muito úmido, às vezes alagado, pontuado por pedras. Quem se abastecia, removia o vasilhame e ia embora.
Mas o chafariz tinha funções adicionais: lá, havia lavanderias de cimento que permitiam às mulheres – muitas delas lavadeiras – lavar montanhas de roupa. Lençois, fronhas, toalhas de banho e de mesa, vestidos, calças, camisas, saias, tudo era pendurado nos espaços escassos dos muros ou em cercas de arame farpado. O colorido conferia aspecto singular ao chafariz, cujos muros, cinzentos, eram feios, tristonhos.
A algazarra habitual das lavadeiras até lembraria a estalagem d’O Cortiço, de Aluísio Azevedo – só muito depois fui ver o livro e enxergar as semelhanças -, com o barulho incessante das esfregações, do bater de roupas, da água escorrendo das torneiras e, sobretudo, das vozes, dos risos, dos gritos, dos impropérios, dos ralhos – as crianças, algumas bem miúdas, acompanhavam as mães e se divertiam enquanto estas se esfalfavam – e, às vezes, até das cantorias.
Traiçoeira, a memória apagou a lembrança da família que residia no chafariz. Sim, lá residia uma família, com crianças, numa casa minúscula. Imagino que, dedicavam-se à zeladoria, cuidavam do equipamento. O ambiente era predominantemente feminino: além das lavadeiras, basicamente eram as mulheres que iam apanhar água. Às vezes, um sujeito aparecia por lá e transportava seu provimento de água em latas ou imensos caldeirões.
Depois que a água de Pedra do Cavalo começou a abastecer os feirenses com regularidade, o chafariz caiu em desuso. Com o passar dos anos, os muros foram desabando, as lavanderias danificadas não foram substituídas, não houve nenhuma reforma e o equipamento foi extinto. Mesmo pagando pela água, as lavadeiras passaram a dedicar-se à tarefa na comodidade de casa. Assim, o colorido dos lençóis desapareceu.
Aquele chafariz constitui uma das lembranças mais marcantes da minha infância. Frequentando-o, tive a oportunidade de estreitar contatos com a vida das ruas, ver de perto gente que, noutras circunstâncias, não veria, mesmo morando perto. Anos depois, quando disputava aguerridos babas no campinho que fica ao lado, às vezes parava e examinava os muros – ainda existiam – e uma ponta de saudade às vezes me dominava.
Foto ilustrativa
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